Desinformação e viés nos jornais (Série “Racialismo Negro”, texto nº 4)

A realidade é aquilo que, quando você para de acreditar, não desaparece

– Philip K. Dick


O texto vai longo. Se pretende ler tudo de uma vez, recomendo arranjar um lugar confortável para se sentar. 


No dia 19 de novembro de 2020, numa unidade do supermercado Carrefour de Porto Alegre, um homem negro foi morto por dois seguranças terceirizados. O caso abalou o país não apenas pela desproporcionalidade da reação – o soco dado por João Alberto Silveira Freitas num dos seguranças terminou com sua morte após espancamento e asfixia –, mas por causa da cor da vítima. A tragédia deveria motivar uma discussão generalizada sobre o despreparo emocional de alguns profissionais que trabalham pela proteção de pessoas e bens – seguranças, guardas e policiais –, mas foi aproveitada por militantes que desejavam ter um George Floyd brasileiro. Daí para a tese de que o crime aconteceu por discriminação de cor foi muito rápido. Jornais de todo o país compraram o argumento da guerra racial, a mídia passou a noticiar a morte de Beto Freitas como mais uma para a conta do racismo, o ministro do STF Gilmar Mendes se pronunciou no Twitter. 


O Twitter não tende a ser uma plataforma, digamos, “positiva”. Usado como instrumento para polêmica, soberba, provocação constante e xingamentos por bagatelas, parece incentivar a manifestação ligeira sobre tudo, o que acaba em muitos momentos desandando para a publicação de maus juízos. Não é um espaço apropriado para um ministro do STF utilizar a fim de expressar suas opiniões figadais sobre casos que depois podem, eles mesmos ou outros similares, parar em seu gabinete para julgamento. Sem evidência de que Beto Freitas foi morto por ser negro, um ministro da máxima instância do Judiciário já fez apreciação pública do ocorrido – sem processo, sem direito à defesa da outra parte e sem provas de causalidade. Para Gilmar Mendes, a tragédia do Carrefour foi por motivos raciais. Ele escreveu

“O Dia da Consciência Negra amanheceu com a escandalosa notícia do assassinato bárbaro de um homem negro espancado em um supermercado. O episódio só demonstra que a luta contra o racismo e contra a barbárie está longe de acabar. Racismo é crime!” 

Na sociedade do espetáculo, as desejadas qualidades da discrição, da paciência com o curso das coisas e da ponderação por parte do Judiciário são escanteadas por alguns magistrados. Se a lógica “homem negro foi morto por homem não-negro, logo racismo” é considerada correta para um juiz que não aguentou esperar a providência de mais informações sobre um caso que inflamava o país – e já pôs seus dedos para saltitar na tela do celular –, não sei por que não poderíamos começar a substituir seu trabalho por máquinas ou pessoas comuns menos onerosas ao Estado. Conheço taxistas que também opinam ligeiramente sobre notícias do cotidiano conforme elas lhes parecem, e dão sentenças amadoras e categóricas sobre quem é o moço e quem é o bandido da situação, sem muito meio-termo. Se um magistrado usa a mesma metodologia que um cidadão rude com ensino fundamental para compreender uma questão, a exigência de “notório saber jurídico” não terá muita utilidade – a menos que ela se refira a fazer um julgamento ruim por meio do mais prescindível juridiquês. Acho que a maioria da população, culta ou inculta, dispensaria essa parafernália. 


Quem aprecia ativismo judiciário deveria prever que magistrados que colocam suas convicções acima da legalidade não atenderão somente a uma agenda. Se o ativismo de um for permitido para agradar às ideias da esquerda, haverá outro que tomará liberdades para agradar às teses dos reacionários, dos neopentecostais, do “mulher que apanha deu motivo”, da combinação de estratégias com os acusadores de um réu. E quanto mais alto nas instâncias está essa presunção ativista, mais nos encaminhamos para uma rua sem saída. 


Se um membro do STF, o maior tribunal a que podemos recorrer, aplica suas vontades caprichosas acima das clarezas da lei e dos princípios do Direito que conduzem a interpretações mais acertadas das normas que são subjetivas ou lacunares, a quem se recorre? Ninguém no país está acima, em hierarquia jurídica, desses ministros apontados pelos presidentes da ocasião e que só sairão do cargo pelo cajado da morte ou pela velhice. Portanto, é nosso dever exigir que nos tragam rigor em vez de atuar como um Deus que no Velho Testamento manda pragas, incêndios e dilúvios para punir a humanidade, e depois, no Novo Testamento, vem falar de amor e “vinde a mim as criancinhas” – numa terra repleta de fariseus que em execuções anteriores seriam transformados em estátuas de sal. Inconstância e arbítrio da parte de deuses e de homens que às vezes se pensam deuses só nos trazem insegurança. Devemos obedecer à lei ou aos juízes? E o entendimento da lei varia conforme o humor dos juízes? 


Houve uma época em que eu me confortava com a ideia de que autoritários do identitarismo costumam ter asco aos estudos aprofundados, são afeitos à gritaria na praça em vez do silêncio nas bibliotecas, demonstram preguiça com livros que não são de bolso. Então pensava que essas pessoas dificilmente alcançariam cargos na magistratura, que demanda dedicação por anos para passar em todas as etapas do concurso. Continuo pensando isso, mas não tenho mais com o que me confortar. Ainda é baixa a probabilidade de um lacrador identitário conseguir se tornar juiz ou um advogado exemplar que receba indicação para o STF, mas ele consegue influenciar quem chega lá


Não é preciso esforço intelectual: você espera que outras pessoas se dediquem muito aos estudos, alcancem cargos de poder, e então age, forçando sua agenda pela histeria, pela falácia sentimentalista, pela pressão das redes sociais, pela imprensa cooptada. Já existem juízes dando sentenças alegando que injúria de negros contra brancos com base na cor da pele não representa crime contra a honra por não existir “racismo reverso”. No caso Heraldo Pereira versus Paulo Henrique Amorim, em que este chamou aquele de “negro de alma branca” e escreveu que Heraldo “não conseguiu revelar nenhum atributo para fazer tanto sucesso, além de ser negro e de origem humilde”, o STJ, por vontade própria mal fundamentada, reverteu a prescrição do tipo penal da injúria racial para colocá-la alinhada ao tipo penal do racismo, que é imprescritível. Sobre isso, recomendo o texto STJ faz interpretação extensiva em Direito Penal contra o réu, do jurista Lenio Luiz Streck, que contestou a decisão e fez o seguinte alerta: 

“Um pouco de ortodoxia no direito penal parece-me bom. Aliás, falta muita coisa nesse sentido no Brasil. Estamos ficando demasiadamente ‘avançados’. Moralizamos o direito. Acreditamos muito pouco no direito posto e queremos corrigir esse direito ‘insuficiente’ com nossas opiniões e teses. Talvez por isso o relator no STJ tenha dito ‘tenho para mim’. Sim. Ele ‘tem para ele’. Só que o direito é de todos. É uma linguagem pública. Não depende de uma posição pessoal. Eu também não gosto de atitudes preconceituosas. Mas nem por isso posso atropelar a legislação.” 

A legislação penal já é, em algumas partes, ruim e desproporcional, e agora juízes que desejam lavar as leis com moralidade identitária resolvem torná-la pior passando por cima da divisão dos poderes, e não para beneficiar o réu ou a aplicação mais ajustada de uma punição, mas para atender a uma demanda tribal que não foi recebida (ainda) pelos legisladores. O ativismo judicial não é mais inconsciente ou visando a um bem maior prático – não soltar André do Rap –, mas é uma bandeira que se levanta com orgulho e que é defendida como uma forma de combater “o mal” e “a imoralidade”, seja lá o que isso signifique na cabeça de cada juiz. Homicídio prescreve. Estupro prescreve. Racismo não prescreve, e para alguns justiceiros a injúria racial também não deveria prescrever. Um homem que hoje xinga com impropérios racistas uma mulher negra pode ter que pagar pela injúria 20 anos depois. Se ele tivesse estuprado a mesma mulher negra, o crime já teria prescrito e ele não precisaria mais pagar por ele. Tem cabimento isso? 


O ministro Gilmar Mendes vir a público manifestar julgamento precipitado sobre um caso que no futuro pode cair no colo dele não é sintoma isolado da doença que está contaminando as instituições. Quem vai deixando a coisa correr como se nada de grave estivesse acontecendo esquece que, como escreveu Machado de Assis, “com pingos d’água é que se alagam as ruas”. 



Imagino que algum leitor esteja revirando os olhos enquanto me chama mentalmente de “má” e “desonesta” porque acredita que o que aconteceu com Beto Freitas não teria acontecido, “jamais”, se ele fosse branco. Convido esse leitor a ter mais calma, e também menos fé na proporção que alguns assuntos ganham na mídia e nas redes sociais. Mesmo nos jornais que se proclamam plurais e imparciais há tendenciosidade, e essa tendenciosidade costuma ser favorável à esquerda porque a maioria dos jornalistas das grandes redações é de esquerda (pelo menos nos costumes). A ideologia de um jornalista pode levá-lo a se render aos apelos da militância, maximizar notícias convenientes, minimizar notícias que fujam à narrativa, usar seu trabalho dentro de um jornal em tese apartidário para passar sua opinião nas entrelinhas e na formulação das manchetes. Já voltarei a isso. 


Primeiro, quero dizer que no dia 8 de novembro de 2020, na cidade de Nova Prata (RS), um homem branco chamado Arlindo Elias Pagnoncelli foi linchado após suposta importunação sexual a uma mulher e a uma adolescente. A mulher, gravada em vídeo dizendo “não pode mexer com mulher casada”, conclamou pessoas ao redor a espancar Arlindo, que foi internado e morreu 10 dias depois. Cerca de 40 pessoas participaram do linchamento, entre agressores e testemunhas. Isso ocorreu poucos dias antes da morte de Beto Freitas, mas o caso não rendeu uma boa história para o identitarismo que se comove com crimes dependendo da estética das vítimas. Em 2017, em Belo Horizonte (MG), um homem branco de 25 anos foi espancado até a morte por quatro seguranças de uma boate porque se recusou a deixar que o revistassem à procura de drogas. Em 2017, em Uberlândia (MG), um turista estadunidense branco de 51 anos foi espancado até a morte por dois jovens, supostamente por causa de um esbarrão. Em 2018, em Santos (SP), um jovem branco de 21 anos foi espancado até a morte por um segurança porque contestou o valor de 15 reais na sua comanda. Em 2020, em Jaguaruana (CE), um homem branco de 29 anos foi espancado até a morte após comemorar a vitória de um candidato político. Em 2020, no Rio de Janeiro (RJ), um psicólogo branco de 58 anos foi espancado até a morte ao tentar defender uma mulher das agressões de seu namorado. Em 2020, numa praia da cidade de Cruz (CE), um turista argentino branco foi morto a pauladas após se envolver em uma briga. Em 2020, em Blumenau (SC), um homem branco de 32 anos foi espancado até a morte por causa de dívida de drogas. Em 2020, em Parauapebas (PA), um homem branco de 47 anos foi espancado até a morte após se envolver em uma briga em uma festa. Em 2020, em Novo Hamburgo (RS), um homem branco de 52 anos foi espancado até a morte por se recusar a dar carona para um conhecido que era foragido do presídio. Em 2021, em Guaraí (TO), um ex-vereador branco de 50 anos foi espancado até a morte dentro de casa – ainda não há informações da motivação do crime. 
Se homens brancos também são alvos de espancamento até a morte por motivos fúteis, quem é o magistrado das consciências que consegue garantir que a morte de um homem negro nas mãos de dois seguranças brancos – sem nenhum indício claro de motivação racial – ocorreu por racismo? 


Convido o leitor a fazer uma experiência. Vá ao Google, digite a expressão “espancado até a morte”, depois clique na aba “Notícias”. Já adiantarei o que encontrará ali, além das matérias sobre Beto Freitas: 


1. Há muitos espancamentos até a morte no Brasil. Apenas em 2020 há dezenas de casos. É difícil estabelecer uma proporção racial porque a maioria das notícias não mostra as fotos das vítimas e dos agressores. Quando mostram rostos, você vê negros/pardos espancando negros/pardos, brancos espancando brancos, brancos espancando negros/pardos e negros/pardos espancando brancos. Para começar a fazer uma leitura racial desses casos, seria necessário não só que soubéssemos a cor dos agredidos, mas dos agressores. 


2. Quase todos os espancados até a morte por estranhos são homens jovens. A maioria dos espancadores identificados são homens jovens também. 


3. Dentre os espancados estão muitos homens que cometiam crimes com frequência numa região. Há vários casos assim no Amazonas: a população se reúne para espancar determinado jovem conhecido por praticar furtos. Em 2020 há no mínimo seis casos com essas características só na região de Manaus. 


4. Dentre os espancados há casos de vingança por ciúme – Fulano “se envolveu” com a ex-mulher de Beltrano –, de vingança por causa de tráfico, de justiçamento porque a vítima era suspeita de abusar sexualmente de crianças, de briga por ninharia. Nos casos de vingança pelo tráfico, especulo que os números estão subestimados. Ao saber que um traficante matou seu filho, o medo pode te impedir de fazer uma denúncia que depois se transforme em manchete de jornal. Talvez você se conforme em deixar seu filho figurar na lista de “desaparecidos” para evitar que mais mortes aconteçam. 


5. A pesquisa também traz como resultado espancamento até a morte de cachorros e crianças. No caso das crianças, horror dos horrores, o espancamento tende a acontecer por parte de pai/mãe ou padrasto/madrasta. 


6. A pesquisa também traz como resultado espancamento até a morte de mulheres, apesar de elas serem mais alvo de esfaqueamento, estrangulamento e tiro. Horror dos horrores, os agressores são, na imensa maioria das vezes, namorados/maridos, ex-namorados/ex-maridos. 


Quando Beto Freitas foi morto no Carrefour, uma militante negra escreveu que “só a gente sabe o que é ver uma notícia dessas e imaginar que poderia ter acontecido com a gente”. Isso não procede. Se você desassociar as mortes violentas de mulheres de seus namorados/maridos ou ex-namorados/ex-maridos, é raro encontrar notícias de espancadas até a morte na rua. Quem tem que temer os espancamentos por estranhos são os homens de todas as cores. 


Identitários defendem que é necessário fazer uma separação de categorias oprimidas por identidades porque cada categoria tem suas particularidades reivindicatórias. Negros passam por situações negativas de uma forma, homossexuais passam por discriminação de outra forma, indígenas vivem questões específicas. Concordo com a premissa, mas não com o desdobramento prático que ela adquiriu: “lugar de fala” como carteirada para falar absurdos sem receber refutação do interlocutor, “vivência” como pretexto para dissertar com “autoridade” sobre temas que não se conhecem – um militante negro com vivência e que está fazendo supletivo pela terceira vez se acha mais habilitado a falar sobre a África do que um historiador branco africanista –, ressentimento anacrônico, vontade de vingança coletiva, competição de opressões em que umas identidades se sentem mais oprimidas que outras. Daniele Giglioli, professor de Literatura Comparada italiano, escreve, em seu livro Crítica da vítima

“A vítima é irresponsável, não responde por nada, não deve se justificar: é o sonho de qualquer poder. […] Não por acaso é objeto de guerras, na pretensão de estabelecer quem é mais vítima, quem foi primeiro, quem por mais tempo.” 

E ainda: 

“O dispositivo vitimário tem a seu lado a força da palavra sem mediação, presente a si mesma e sem a necessidade de verificação externa: diante de uma vítima real, sabemos imediatamente o que sentir e pensar. Desse status se apropria, transformando por transferência analógica uma desvantagem em vantagem, o líder vitimista (e com frequência também os líderes das vítimas): como se atrevem a discutir minha dor, minha inocência, minhas próprias prerrogativas? Eu sou inquestionável, acima de qualquer crítica, senhor e mestre de seu olhar e de suas palavras. Vocês não têm direito a todos os enunciados possíveis: somente aos que me são favoráveis, do contrário se degradarão a algozes.” 

E também: 

“[…] o sinistro fenômeno que Jean-Michel Chaumont denomina ‘a concorrência das vítimas’, a disputa pelo primado do sofrimento, as macabras disputas entre os humilhados. Nosso genocídio foi pior do que o de vocês; o nosso é o único verdadeiro, e vocês não têm o direito de se comparar a nós; o nosso começou antes; o nosso durou mais; vocês não têm legitimidade para falar do seu porque não condenaram suficientemente o nosso; o nosso foi perpetrado com gás; o nosso com facões; o nosso por motivos ideológicos; o nosso por exploração econômica.” 

A vitimização se transformou numa moeda forte no mercado das ideias. 


De um justo “grupos minoritários específicos têm demandas específicas” passamos para um delírio plangente – “sou oprimido por todos os lados” – que acaba se transformando em disputa de poder. Quem tenta colocar conjunções adversativas após os ditames autoritários desses militantes seria alguém que “sempre teve o poder e não quer abrir mão”, segundo a paranoia acalentada por fissurados como Foucault, que via domínio-domínio-DOMÍNIO nas relações mais vãs. Identitários vêm à cidade com sangue nos olhos, bradam a ameaça “alguns dos ancestrais de vocês maltrataram nossos ancestrais, e é chegada a hora da revanche”, destroem nossos valores de liberdade, legalidade e algum apreço pela ciência, dizem que se morrermos no processo “será mais do que merecido” – e se lamentamos um “ai” é porque nos recusamos a partilhar nossos “privilégios”. “Você vai apanhar, e não vai poder chorar.” Masoquistas cooptados pelo sentimento de culpa aprovam o ódio contra eles mesmos e redigem textos medonhos de autoimolação na internet. Esperam alcançar o direito de receber a hóstia, que neste caso é um biscoito. “Finja-se de morto, finja-se de morto! Bom garoto, bom garoto.”

  
De todo modo, se querem mesmo respeitar as “identidades tão particulares”, mulheres negras devem parar de dizer que sofrem de forma sistêmica nas mãos de linchadores e policiais truculentos “por causa do racismo”, já que elas são muito menos alvo de linchadores e policiais truculentos do que homens jovens. Um jovem branco e pobre é muito mais perseguido pela polícia do que uma jovem negra e pobre, e arrisco dizer que até um jovem branco de classe média é mais maltratado pela polícia em abordagens do que jovens negras pobres: ouvi e li inúmeros relatos de jovens brancos de classe média que foram recebidos por policiais a tapas, revistas humilhantes, xingamentos gratuitos e apontamento de arma. Não, a militante negra não sabe o que é ir a um mercado e sair de lá morta após espancamento. Esse tipo de opressão impera sobre a identidade masculina, geralmente jovem. Seria a sociedade misândrica e “efebofóbica”? 


Uma militante negra que se acha em igualdade de lugar de fala com um homem negro jovem para reclamar da truculência da polícia e de multidões linchadoras contra pessoas da sua identidade estaria “roubando protagonismo”? Segundo as regras da cartilha da seita que resolveu seguir, sim. Tratarei disso com mais detalhes numa postagem futura – ainda desta série “Radical do movimento negro” – sobre o estereótipo policial. 



Num país em que homens de várias tonalidades são espancados por outros homens de várias tonalidades, é difícil apontar um episódio de espancamento entre agressores brancos e vítima negra e dizer “foi por racismo”, como fez Gilmar Mendes, sem elementos comprobatórios dessa tese. Para os editorialistas da revista Época, entretanto, é fácil. Após o ocorrido, eles chamaram o caso de Beto Freitas de “racismo explícito”. Nenhuma pessoa razoável consegue ter certeza de que houve ali sequer racismo implícito, mas os editorialistas da Época estão certos de que Beto foi morto numa manifestação racista “explícita”. Como chegaram a essa conclusão tão antijornalística? Talvez assim: “negro morto por branco, portanto racismo, sem dúvida”. Sendo assinante da publicação, começo a duvidar do que vou ler daqui para a frente depois de conhecer o tipo de raciocínio que estão usando para estabelecer causalidades forçadas. 


Com o advento do identitarismo, que contaminou a mídia como uma obrigação moral, mudei minha forma de ler jornal. Antes eu lia com o seguinte pensamento: “que bom estar em casa e pagar somente trinta reais por mês para que uma miríade de jornalistas faça o trabalho de apurar notícias para mim, sem que eu precise me debater em uma porção de lugares para entender o que está acontecendo”. Saudade dessa época da inocência. Agora leio jornais com dúvidas aflitivas, saio de algumas matérias procurando outros ângulos, pesquiso além versões mais detalhadas do que acabei de ler. Pago por jornalismo que alega almejar a imparcialidade, recebo agenda identitária embutida em algumas notícias e aí tenho que eu mesma fazer um jornalismozinho amador em outros lugares com a ajuda de parcos instrumentos. Imagine que quando vai ao médico você sinta necessidade de consultar mais três médicos porque não confia no diagnóstico do primeiro. E também não confia muito nos diagnósticos que os outros três poderiam dar numa consulta única, mas sabe que juntando todos os quatro é possível entrar em alguma espécie de consenso sobre o diagnóstico mais próximo da verdade. Assim estão certos jornais sobre temas caros à esquerda identitária. 


Analisarei o caso da Folha de S.Paulo, que é o jornal pago que escolhi assinar em versão digital. É plural, dá espaço para inúmeras vertentes políticas, acredito que é o jornal mais completo do país e onde estão as questões mais importantes que rodeiam nosso cotidiano. Mas para um veículo de comunicação que se propagandeia como plural e imparcial a Folha está bastante confusa nas seções que pedem objetividade e nas seções que pedem opinião. Com isso, atraiçoa o leitor e desinforma. 


Um jornal como a Folha é separado mais ou menos assim: 


Notícias – Matérias que informam secamente o quê, quem, quando, onde, por quê, como 

Reportagens – Notícias com análise mais estilizada e pormenorizada dos casos 

Editoriais – Opinião de quem comanda o jornal sobre os assuntos do momento 

Colunas e blogs – Textos com liberdade quase total para opinar sobre o que quer que seja 


Folha publica editoriais diariamente e tem em seu quadro 186 colunistas e blogueiros. É um número altíssimo de gente livre para dar suas opiniões sobre política, modelos econômicos, venda de órgãos, religião, novelas, fatos engraçados, modismos, reformas sociais, literatura. Já não basta? Por que um jornal que se declara plural e imparcial permite que jornalistas coloquem opiniões infundadas em notícias e reportagens, e conduzam os fatos para atender a seus interesses ideológicos? Não sou contra manifestações pessoais, mas acho que delas a Folha já está cheia com seus 186 colunistas e blogueiros para todos os gostos somados aos editorialistas. Ora, se quisesse ler notícia enviesada eu assinaria a Gazeta do Povo – abertamente conservadora e religiosa – ou acompanharia o Granma – cabresto socialista. Não, quero pagar pelo que a Folha me ofereceu: tentativa de imparcialidade nas notícias, parcialidade nas colunas. 


A imparcialidade é difícil de existir em plenitude no ramo flexível do jornalismo. Escolher o que estampar na capa de um jornal e decidir a quais acontecimentos dar atenção num mundo repleto de notícias a todo momento já é ser parcial. Ainda assim, é nobre que o valor da imparcialidade seja colocado como norte numa redação, porque passa ao leitor credibilidade e modéstia. São os presunçosos que ao dispor de espaço para informar os fatos frios – não é sua coluna, não é seu blog, não é seu editorial – resolvem instruir os assinantes a refletir de determinada forma, acreditando que têm a missão de “ensinar a pensar” – eufemismo habitual para doutrinar – e fazendo o leitor concluir uma tese que não é corroborada pelos dados apresentados no texto. Nenhuma pessoa íntegra dirá que a impossibilidade de ter um caráter perfeito evidencia como é inútil a busca pela melhoria de caráter, assim como nenhum jornalista preocupado com a verdade pensaria que “a imparcialidade total é impossível, então vamos botar pra quebrar enfiando nossas ideologias e opiniões no meio das notícias!” 


Já a pluralidade da Folha estaria demonstrada no número de colunistas e blogueiros de vertentes diversas que escrevem para o jornal, o que é louvável. Antes de lê-los você sabe que provavelmente encontrará ali opiniões. Gostamos de ler textos pessoais e às vezes temos nossos colunistas prediletos, que visitamos com frequência e a quem buscamos para nos ajudar a destrinchar um assunto, para entender outro ponto de vista ou para entretenimento. Acho uma grande demonstração de não saber ler jornal quando um colunista comum é perseguido por leitores que ameaçam cancelar suas assinaturas “porque não é para ler o Gregorio Duvivier que eu pago jornal!”, como se não houvesse 185 outros colunistas e blogueiros para ler e como se uma mensalidade isolada fosse uma fortuna cuja perda funcionaria como forma de ameaçar a Folha. Até que resolvam pôr fim à sua cruzada de ameaças por causa de um colunista inofensivo, muitas vezes esses leitores batem ponto em todos os textos do odiado para avisar que cancelarão a assinatura do jornal. O ódio às vezes é mesmo mais fiel que o amor. Quem ama pode esquecer de ler, mas quem odeia está sempre lá. Quem ama se deita e meio minuto depois já está roncando, quem odeia fica com os olhos arregalados no quarto escuro perdendo tempo pensando em você. 


Outra forma de praticar o valor da pluralidade é buscando a apresentação do “outro lado”. Assim, a notícia que traz uma denúncia com poucas provas – ou sem prova alguma – e que pode prejudicar alguém dará oportunidade para que esse alguém manifeste sua versão da história. Só nas cabeças perturbadas a ideia de que a vítima tem sempre razão deveria ser um princípio penal e jornalístico, impedindo que acusados de crimes ou desconfortos não possam se defender. 


Muito bem, imparcialidade e pluralidade. No dia 3 de dezembro de 2020 a Folha publicou a seguinte notícia: “Morador pede na Justiça apagamento de mural com referências afro e indígenas em BH”. Em que categoria o jornal catalogou a matéria? Racismo. Está lá no topo, clicável; sempre que você quiser ler matérias sobre racismo, essa do morador e do mural vão aparecer na lista. Lendo a notícia, entretanto, não há nenhuma informação que prove nem de longe que o morador pediu o apagamento com referências afro e indígenas da empena de seu prédio por racismo. Não há injúria à artista de apelido Criola, não há xingamento racial à personagem negra retratada. O homem diz apenas que a arte é “decoração de gosto duvidoso” e que poderia causar danos irreversíveis ao prédio. 


Como é a arte repudiada pelo morador? Uma mulher negra e nua está usando uma máscara colorida, e tem um rasgo em seu ventre, de onde sai uma imensa cobra. Em cima de sua mão direita está pintado o aparelho reprodutor feminino. É esta: 

Não vejo nenhum problema nesse desenho, apesar de ter dúvidas se gostaria que o fizessem na lateral do meu prédio. Mas quem vê problema não é racista, a menos que dê motivos raciais para ser contra. Quem não quer em seu prédio a pintura de uma mulher nua com uma cobra saindo da barriga enquanto tem a seu lado um aparelho reprodutor feminino não está sendo “racista” porque a retratada é negra ou porque a artista Criola é parda/negra. Provavelmente inúmeras pessoas negras também não aceitariam receber essa pintura no prédio em que moram. Provavelmente inúmeras pessoas brancas não quereriam uma pintura dessas, em versão branca e feita por artista branca, marcando a um quilômetro de vista o prédio em que moram. 


– Onde a senhora mora, Dona Bertha Baumgarten Stahel? 

– Ô, meu filho, moro naquele prédio em que está pintada uma mulher enorme, branca e pelada, com uma fileira de javalis – animal típico da fauna alemã! – saindo de sua barriga. 


E ainda: se um indivíduo diz “essa arte é ruim” para uma pintura com referências africanas e “essa artista é horrível” para uma pintora negra – isso não configura racismo se ele não fizer menção ofensiva à cor/etnia dos personagens pintados e da artista. Não é racismo achar que uma artista negra é de baixa qualidade. Não é racismo olhar para a pintura de uma mulher negra e dizer “não gostei, prefiro Monet”. Sem elementos racistas na crítica não é correto nem que jornais, nem que juízes façam apreciação subjetiva do caso com base na denúncia de paranoicos. 


A matéria da Folha dá destaque à fala de uma das idealizadoras do festival Cura (Circuito Urbano de Arte de Belo Horizonte), do qual Criola participa: 

“A partir do momento que ele viu que a artista era negra e que seria desenhado o corpo de uma mulher negra com símbolos de matriz africana, acho que está explícito esse racismo. O poder Judiciário está com uma questão forte nas mãos.” 

Racismo “explícito” agora é racismo intuído, “se alguém achar que é, é”, “qualquer crítica a uma pessoa negra se deve a racismo explícito”. Matéria mal catalogada, enviesada, que contribui para difamar pessoas que não são públicas. Nem numa coluna estaria adequado esse texto sem contraponto à altura – o contraponto foi apenas “a Folha tentou contato com os advogados do morador, mas não obteve resposta”–, mas numa notícia o erro é pior. Lemos o jornal buscando informação e encontramos uma matéria em que missionários do racismo estrutural resolvem nos instruir que não gostar da pintura surrealista de uma mulher negra é racismo. Uma categoria que poderia ser “acusação de racismo” se transforma em “racismo” antes da manchete. 


Se você pensa que essa é uma mera catalogação de assunto que não contribui para o mau julgamento do leitor ao estar no topo da página em vez de estar no rodapé como uma etiqueta (tag), experimente ser falsamente acusado de um crime e a notícia sair assim: 


HOMOFOBIA 

Homem atropela ativista gay que dançava no meio da rua 

José da Silva aparece em vídeo atropelando o ativista gay Robson dos Santos; a família da vítima o acusa de homofobia 


Você é o José da Silva que aparece no vídeo. Você estava indo para casa de carro e pensando longe quando, de repente, percebe que acertou uma pessoa após fazer uma curva. Ao sair do carro para ajudar a vítima, amigos dela começam a dizer que você quis atropelá-la porque percebeu que se tratava de um jovem gay fazendo uma performance. Você se defende dizendo que não teve tempo nem de ver que havia uma pessoa no meio da rua, quanto mais que a pessoa era gay, pois estava a 60km por hora e tinha acabado de fazer uma curva. Ao tratar da acusação feita pela família da vítima, o jornal coloca antes da manchete a categoria “HOMOFOBIA”. Não se sente incomodado com isso? Não acha que faz diferença colocar uma tag fatalista antes da manchete ou colocá-la ao final, de forma mais sutil? Não parece que o jornal já está te sentenciando com base numa acusação falsa? 


Dentre os escolhidos para citações no texto do morador e do prédio pintado – só gente partidária da tese de racismo –, há também o advogado do síndico e do condomínio, que nos orienta: 

“Uma decisão do Poder Judiciário determinando o apagamento da obra agora vai corroborar o racismo estrutural.” 

É essa lógica abstrusa que faz intelectuais negros afirmarem que o Direito é racista? 


Doutrinadores sempre acham que têm a missão de espalhar as “boas causas” nas dobras do cotidiano ou como um vegetal picadinho que se esconde no feijão para a criança comer “melhor” sem saber que está engolindo algo que deprecia. Não é preciso um paladar muito apurado para perceber que andam pondo maços de coentro em algumas notícias dos nossos jornais. Tem quem goste. Mas se eu entrei no restaurante porque na porta estava escrito “não usamos coentro”, acho que tenho o direito de reclamar se minha comida vem com ele. 



Se a Folha permite que uma jornalista de seu quadro catalogue uma notícia como “racismo” não só porque ali no meio um terceiro fará essa acusação – mas porque a própria jornalista conduziria o texto como se acreditasse na tese –, não é de admirar que o caso de Beto Freitas também tenha sido catalogado como racismo pelo jornal. Se alguém pedir “prove”, o que os diretores da Folha nos dirão? Talvez “é só uma etiqueta que resolvemos colocar antes da matéria para antecipar uma acusação que virá da parte de terceiros no corpo do texto” –, sendo que esse design prejudica os suspeitos. Duvido que os donos do jornal, se acusados de crimes graves, gostariam de ler isto na capa: 


RACISMO 

Folha seleciona apenas candidatos brancos para três vagas disponíveis na Redação

Houve protesto antirracista em frente à sede da empresa


Que tal?


Talvez os diretores digam “ora, isso não aconteceria se Beto fosse branco” – sendo que a própria Folha noticiou quando brancos foram espancados até a morte. Talvez “é o que todo mundo está dizendo” – quando os jornais, como os juízes, não deveriam pautar decisões com base no delírio popular, que erra demais. Talvez “prove você que não foi racismo” – o que é totalmente sem sentido quanto a quem cabe o ônus da prova. 


Mas o problema de julgamento da Folha não parou só na catalogação improcedente posta num layout ruim. Numa das principais notícias sobre a morte de Beto Freitas, em novembro passado, o jornal publicou uma manchete chamando a vítima de “marido errático”. Ser “errático” é isto: 


“A segunda esposa de Beto, Marilene Santos Manuel, 40, com quem teve três filhos, rendeu-lhe o relacionamento mais duradouro. Foram quase 20 anos juntos. No fim, no entanto, as brigas do casal eram constantes e culminaram em violência doméstica. Beto foi preso duas vezes, enquadrado na Lei Maria da Penha, por agredir a companheira. Passou seis meses preso e, quando saiu, não podia mais se aproximar dela devido a uma medida restritiva.” 


Se Beto foi preso duas vezes por violência contra a mesma mulher, é duvidoso que a tenha agredido apenas duas vezes. Provavelmente nessas duas vezes em que foi preso a violência ultrapassou os limites que muitas mulheres acabam se impondo para aguentar agressões pequenas e médias, que um dia descambam para as grandes violências – e aí são finalmente denunciadas na delegacia. Seis meses preso. Não deve ter recebido essa punição somente por um tapa na cara. 


Afora esse trecho que talvez o jornalista tenha sofrido para escrever – “será que eu falo que ele batia na mulher e chegou a ser preso por isso?” –, a matéria sobre Beto Freitas é boníssima, e mesmo o título inicial do “marido errático” – alterado após críticas – tentou suavizar seu histórico de violência, que incluiria, ainda, uma longa ficha criminal. 


A pergunta: por que era preciso limpar o perfil de Beto Freitas? Era porque os leitores não se comoveriam devidamente com a sua morte se soubessem quem ele era? Acharam necessário conduzir o sentimento de quem lia a notícia? 


O advogado Thiago Amparo, que estica seus conhecimentos formais em Direito para se adaptarem a seus entendimentos identitários – as fábricas de arames e cordas devem estar enriquecendo com ele –, escreveu em sua coluna na Folha um perfil parcialíssimo e melado de Beto: amoroso, brincalhão, ganhara o apelido da madrinha “com um aninho de idade”, adotara um gato de quem não desgrudava. O homem branco linchado dias antes em Nova Prata receberia de Amparo um perfil angelical desses? Aposto que não. Se ele tivesse o histórico de Beto de violência doméstica, eu dobraria a minha aposta. Mesmo assim – mesmo com o duplo padrão de comoção e de compreensão com as contradições e defeitos humanos –, Amparo fazia sentimentalismo partidário numa coluna pessoal em que é livre para escrever a tolice que quiser para quem gosta de ler tolices. Uma notícia não funciona desse jeito. Quando decide assinar um jornal que se vende como imparcial, você quer que a notícia te diga o que aconteceu, e não quais são os sentimentos e as posições do jornalista que redige a matéria. Para isso existem as colunas, os blogs, as redes sociais, os jornais que têm orgulho de enfiar doutrina em tudo. Se ao ler uma notícia da Folha eu consigo saber a opinião do jornalista sobre ela – sem provas que sustentem essa opinião –, é porque provavelmente a notícia está mal escrita do ponto de vista da imparcialidade e da pluralidade. 



Uma terceira notícia da Folha, de 28 de novembro de 2020 – “Artista negro morre baleado em distribuidora de bebidas em SP, e policial suspeito é detido” –, também foi catalogada como “racismo” sem nenhuma evidência de discriminação racial. Aliás, falta até evidência de que o “artista negro” fosse negro – era um homem pardo que certamente muitos negros não reconheceriam como negro. E se não há evidência de discriminação racial na morte, por que o jornalista quis evidenciar a cor do assassinado? Eu gostaria muito de ler um estudo aprofundado sobre a construção enviesada das manchetes e das linhas finas dos jornais. 


Existem militantes que não se preocupam com pessoas mortas de maneira injusta, mas com identidades mortas sobre as quais possam montar palco para fazer militância. Na dúvida, o pardo que oprime é branco. Na dúvida, o pardo que é oprimido é negro. Depende da conveniência. Para jornais contaminados pela agenda identitária, tem sido conveniente que todo pardo que morre pela mão de um branco se torne negro, e também vítima de racismo. Negros mortos por negros, brancos mortos por brancos e brancos mortos por negros – esses têm mais dificuldade de ganhar matérias emocionadas, a menos que participem de alguma outra identidade oprimida.

 
A tese do racismo estrutural está se estruturando na Folha, pois não é sempre o mesmo jornalista que conduz notícias sobre pessoas negras pensando – e querendo que o leitor pense – que tudo de ruim que acontece a negros se deve a racismo. As três matérias que citei acima: cada uma foi redigida por um jornalista diferente. Há, portanto, no mínimo três jornalistas dentro daquela redação fazendo trabalho descuidado para ajudar a corroborar uma narrativa sem apresentar as provas de suas conclusões. E seus chefes aprovam o que escrevem, achando que estão num grande blog. 


Jornalista que põe a narrativa acima dos fatos é de fato jornalista? Essa discussão é improdutiva, porque há quem coloque um pacote de farinha no meio da sala de um museu e chame a si mesmo de “artista”, há quem escreva um livro de 200 páginas contendo apenas dez palavras perdidas entre várias folhas brancas e chame a si mesmo de “escritor”, há quem abrigue espírito mesquinho e chame a si mesmo de “cristão”. Não gosto muito do debate “o que define um artista/ escritor/ cristão/ jornalista?” porque ele tende a ir por um caminho viajante em que os debatedores parecem bêbados filosofando relativismos às 4 da manhã, então prefiro falar assim: mau artista, mau escritor, mau cristão/fariseu, mau jornalista. Querem usar essas denominações para se definir? Usem. Só não esperem que elas digam respeito à excelência e à segurança de merecer o paraíso. Um repolho não passa a cheirar bem se começarmos a chamá-lo de rosa. 



Pessoas com passado criminal violento, como Beto Freitas, merecem humanidade? É claro (ressalva a essa afirmação nas NOTAS). Não considero à toa que nosso sistema prisional seja chamado de “universidade do crime”, já que a tal tentativa de reabilitação do preso e seus direitos humanos estão tantas vezes só no papel, fazendo com que um criminoso de pequeno porte saia da cadeia habilitado a cometer crimes maiores. Mas espero que jornais ditos imparciais não escolham a quais deles dar humanidade e a quais deles dar repugnância, tratando um branco que reiteradamente batia em mulher como “agressor”, e um negro, que fazia o mesmo, como “errático”. Também espero que o jornal não chame de “racismo” casos em que faltam evidências para determinar uma acusação tão séria. Posso esperar isso de um jornal que não se responsabiliza em checar conclusões fatalistas de grupos provenientes da esquerda? Não posso. A Folha entra de maneira antijornalística no barco tanto de ideólogos das guerras raciais quanto de ideólogos das “guerras sexuais”. 



Um grupo de pesquisadores independentes fez uma revisão da maior estatística de morte por homofobia no Brasil, elaborada pelo Grupo Gay da Bahia (GGB), e concluiu que os números veiculados sobre o ano de 2016 são falsos. O GGB, há muito tempo usado como referência pela mídia quando se trata da morte de LGBTs no país, contou como “morte violenta por homotransfobia” suicídios, casos duplicados, casos ocorridos no exterior, acidentes domésticos, overdose e casos em que não é possível afirmar que a motivação do agressor foi homofóbica. É essa estatística, utilizada por vários jornais, que dá base ao discurso de que o Brasil “é o campeão mundial de crimes contra minorias sexuais” – tornando mais humanitário o Irã que executa homossexuais pela força da lei. 


Talvez o leitor tenha torcido os lábios quando leu “pesquisadores independentes”, e entendo parte desse preconceito. Por uma questão de probabilidade de qualidade, optamos por conceder mais confiança a pesquisadores ligados a instituições de renome do que àqueles que trabalham sozinhos, e é difícil acreditar num autônomo estudo de revisão que rebaixa uma estatística divulgada amplamente por tantos veículos de comunicação. Entender o preconceito, entretanto, não é concordar com ele. 


O primeiro ponto é que a maior probabilidade de qualidade não é uma garantia de qualidade, ou seja, podem existir pesquisadores independentes que façam um trabalho mais metódico do que pesquisadores de instituições. Instituições são feitas por pessoas, pessoas têm interesses, instituições podem revelar os interesses das pessoas que trabalham nela. Você confia nas leituras econômicas dos professores da Unicamp ou da Escola de Chicago? Ambas as instituições são renomadas, mas expelem economistas com visões de desenvolvimento muito distintas. Se <A INSTITUIÇÃO> for colocada acima de tudo, ficaremos num embate eterno, porque há instituições de porte para todos os gostos produzindo informações que colidem entre elas. 


O segundo ponto é justamente este: de que instituição estamos falando? O GGB é uma ONG “voltada para a defesa dos direitos homossexuais no Brasil”, não uma empresa de estatísticas sem vínculo com nenhuma causa ideológica. Portanto, o GGB tem interesses – não só o de proteger minorias sexuais, mas de mostrar que sua causa é importante. 


Uma forma de inflar a importância da sua causa é aumentando o pânico. A estratégia é vezeira em movimentos sociais: ONGs feministas inventam que mulheres ganham 30% menos do que homens na mesma profissão, ONGs do movimento negro inventam que é o racismo atual – e não as condições socioeconômicas precárias advindas de um racismo passado – o fator primordial que emperra a vida dos negros no Brasil. Instituições, autoridades, diplomados, partidários, profissionais, estudiosos – qual é o interesse deles? Escreve Daniel J. Levitin em O guia contra mentiras: como pensar criticamente na era da pós-verdade

“Ao avaliar um especialista, lembre-se de que especialistas podem ter vieses sem que nem eles percebam. Ao tratar de um mesmo tumor, um cirurgião oncológico pode recomendar cirurgia, enquanto um radio-oncologista recomenda radioterapia e um oncologista clínico recomenda quimioterapia. Um psiquiatra pode sugerir medicamentos para depressão, enquanto um psicólogo sugere terapia pela fala. Como dizia o velho ditado, para quem só sabe usar martelo, todo problema é prego.” 

Ativistas de movimentos sociais concluem em pesquisas coisas que corroboram suas ideias. Marxistas também. Liberais também. Desenvolvimentistas também. Crudívoros também. Funcionários públicos também. Há uma gama de “pesquisadores” que interessantemente sempre encontram conclusões que corroboram suas hipóteses iniciais. Portanto, não apenas as autoridades não deveriam ser idolatradas – ainda que em muitos casos valha a pena confiar nelas por razões econômicas e probabilísticas –, como é bom conhecer de antemão quais são seus interesses. 


Todos temos interesses. Aquelas pessoas que gostam de exibir um rótulo – ideológico, militante, político, econômico, filosófico, alimentar, religioso, estético, corporativista – possivelmente contaminarão suas conclusões e suas “curadorias da informação” de modo a confirmar o viés que carregam. Deixar de ouvi-las é impossível, pois todos somos assim. O importante é saber de suas inclinações, analisar friamente o que concluem e, se viável, buscar o contraponto. Às vezes não há contraponto. Às vezes o contraponto é ruim ou reles, apegado a detalhes supérfluos – como fazem aqueles críticos que tentam desmerecer um livro inteiro por causa de uma nhaca de um parágrafo controverso. Mas muitas vezes o contraponto traz informações que aquelas pessoas não quiseram mostrar ou nem sabiam que existiam porque só gostam de ler o que ratifica sua visão das coisas. 


A revisão da estatística de mortes LGBT de 2016 do GGB não teve contraponto. Os pesquisadores independentes prevaleceram sobre a instituição, que não conseguiu refutar a revisão e retirou a edição de 2016 da página. 


Sugiro rebaixarmos o fetiche da “instituição de ouro” quando uma de suas teorias é contraditada e ela não consegue contraditar a contradição. Repito: acreditar em instituições por razões de economia de tempo é justo. Se tivéssemos que ser céticos quanto a t…u…d…o, seria difícil sair da cama, comer, andar na rua, tomar um remédio, votar, abrir um e-mail. Precisamos depositar confiança em alguma coisa porque é impossível revisar todas as informações que nos afetam. Mas as instituições não estão acima dos fatos. Se um fato rebaixa o glamour de uma instituição, fique com o fato, não com a instituição. E torça para que a instituição melhore com a crítica. Se a crítica faz a instituição melhorar, ela tem espírito científico. Se a crítica faz com que puramente desqualifique os críticos e mantenha sua convicção no erro, ela tem espírito de seita. 


Estatística não é arte plástica para ser questão de gosto. Pode ser tentador se encantar por aquelas que validem as teorias nas quais preferimos acreditar, mas essa conduta irresponsável mata, desencaminha políticas públicas, inventa a realidade que virará pauta de jornais, transforma algozes em vítimas e vítimas em algozes. Desconfie dos interesses dos estatísticos. Desconfie de agentes plenamente ideologizados que resolvem trabalhar com números. Desconfie dos novos significados que as palavras ganham nas mãos de pesquisadores empenhados em compor uma história. 


Às vezes uma estatística mostra que aumentou o número de ocorrências do crime X no último ano. Olhe melhor. Pode ser que a notificação do crime tenha aumentado por algum motivo – uma campanha de conscientização, por exemplo –, e também pode ser que os pesquisadores ampliaram os casos que se enquadram no crime X. Se em 2014 era falta de educação cuspir na rua e jogar lixo no chão, uma estatística de 2015 alertando que a falta de educação aumentou 600% pode ter chegado a esse dado espantoso porque os pesquisadores passaram a também considerar como “falta de educação” dizer palavrões, usar decote profundo na igreja, entrar sem camisa na lotérica. Aumentou a falta de educação? Não, aumentou o que os pesquisadores consideravam falta de educação. 



As estatísticas de mortes de LGBT do GGB dos anos seguintes a 2016 são fidedignas? Dei uma passada de olhos no que a instituição computou como “vítimas de homotransfobia” em 2019 e a resposta é não. O instituto mantém o padrão de enfiar impurezas no meio do produto para avolumar o pacote final. E essa técnica de adulteração é deliberada: na seção “Da proposta e metodologia” do relatório, o GGB atribui a necessidade de misturar casos certos com casos incertos à “homotransfobia estrutural” (!) e à falta de dinheiro, que impediria a “profissionalização da coleta dos dados”. Depois de assumir que não faz trabalho profissional, o autor do texto encerra a seção exaltando o voluntariado de quem trabalha pela coleta de dados do GGB – talvez pedindo que não se olhem os dentes de um cavalo oferecido de graça? 


Mesmo que se pense que os números da violência no Brasil estão subestimados, não é supondo motivação homofóbica em todo caso de LGTB morto que se conserta isso ao se produzir uma estatística. Com a possível exceção das pessoas assassinadas por traficantes, nós não temos um problema generalizado em notificar a morte. O maior problema é notificar violências que não terminam em óbito e descobrir quem são os agressores das violências que terminam. 


Vejamos uma amostra bizarra no relatório de 2019 do GGB, que apresenta o link para a matéria jornalística sobre cada morte no final do documento, numa tabela anexa. Como esse compilado é feito por clipagem de notícias, fica mais fácil analisar cada caso contabilizado na estatística. 


Nesta notícia, um casal formado por dois homens foi encontrado morto a facadas dentro de casa em Itupiranga (PA), e a hipótese principal com a qual a polícia trabalhava era de que eles se mataram – ou um matou o outro e então se matou – após discussão. Não encontrei matérias posteriores sobre o caso apresentando dados que contestassem a hipótese. Nesta outra notícia, em Barra Mansa (RJ), uma mulher matou sua companheira após discussão. Quando um gay mata seu parceiro gay esse crime deve entrar para estatísticas de morte por homofobia? Nesta terceira notícia, em São Carlos (SP), uma travesti que foi esfaqueada por seu namorado conseguiu tirar a faca da mão dele e o matou. Se a história procede, é um exemplo irrepreensível de legítima defesa, mas o namorado morto entrou para a conta de mortes por homofobia por quê? Nesta quarta notícia, de Palmas (TO), um homem que supostamente fazia programas sexuais matou seu cliente porque ele lhe devia 600 reais. Não há informação que faça o homicídio ser vinculado a motivação homofóbica. Nesta quinta notícia, em Jaraguá do Sul (SC), uma travesti morreu ao ser atropelada por um carro da polícia que supostamente estava com o giroflex ligado e seguia para atender uma ocorrência. Pode ser que o policial tenha desejado atropelar a travesti por ela ser uma travesti? Pode, mas é improvável. Jaraguá do Sul é uma das cidades menos violentas do país, e a notícia diz que a travesti foi atropelada ao atravessar a rua. Essa travessia de rua durou quanto tempo? Porque é em um segundo que um carro atinge uma pessoa que está atravessando a rua; não há como o policial da viatura ter aguardado e pensado “quando uma travesti começar a atravessar, vou arrancar o carro e atropelá-la” – não daria tempo de ele fazer isso, a menos que a travesti estivesse atravessando a rua com vagar. Provavelmente ele estava em média/alta velocidade, a travesti não olhou que um carro vinha pela rua antes de atravessar e então foi atropelada. Para o GGB, essa morte se deveu a homofobia. Com base em quê? Na suposição da intencionalidade do motorista. E nesta sexta notícia, em Rondonópolis (MT), um homem matou seu namorado a golpes de picareta após desentendimento durante relação sexual. O assassino parece ter algum transtorno mental, pois ao ser filmado na delegacia sorriu para a câmera. É seguro afirmar que um homem que mata seu namorado – não é um estranho que aliciou um gay numa festa fingindo ser gay também para depois matá-lo – tem motivação homofóbica? Negros mortos por negros entram na conta de “mortos por racismo”? Mulheres mortas por mulheres entram na conta de “feminicídio”? Aborto espontâneo entra na conta do “a cada X horas, uma em cada Y mulheres aborta no país”? Talvez, pois 

“[…] os últimos relatórios do Grupo Gay da Bahia têm recebido algumas críticas, seja da própria família Bolsonaro, seja de membros do segmento LGBT, especialmente em relação ao conceito de homotransfobia como rótulo inclusivo para todos os casos de mortes violentas de LGBT+. Temos adotado a mesma postura epistemológica e política do movimento feminista, negro, indígena, etc., que incluem em suas listas as vítimas do machismo estrutural e racismo estrutural. Consideramos portanto homotransfobia não somente as mortes violentas com indícios diretos de ódio, mas também os frequentes casos de homotransfobia estrutural, por isto [sic] não é tarefa fácil apontar uma causa única de tais mortes violentas, mesmo porque a condição de ser travesti em situação de rua/prostituição, do gay morar sozinho e ser alvo de bullying de vizinhos e parentes, tais constrangimentos podem conduzir a adoção de práticas de risco, a exemplo de levar desconhecidos para casa e terminar em latrocínio.” (grifo meu) 

Ou seja, o “estrutural”, na prática, quer dizer que tudo de ruim que acontecer a mulheres, negros e gays será atribuído a machismo/racismo/homotransfobia estrutural. Que me lembre eu nunca tinha encontrado uma confissão tão clara de que “sim, é assim mesmo que inflamos dados sobre minorias identitárias e causamos pânico”. Então é isso que chamam de “outras epistemologias” e reclamam que a universidade não chancela… Não se preocupem, militantes: parte da universidade, da mídia e das empresas já está aceitando a epistemologia de vocês que conclui que 2 gays mortos por seus namorados gays + 2 gays mortos após roubo = 4 gays mortos por homotransfobia. 


E não entendi o final do trecho citado acima. O constrangimento por morar sozinho e ser alvo de bullying dos vizinhos faz pessoas LGBT levarem desconhecidos para casa? Sugiro ao GGB rever o texto confuso, rever a metodologia do estudo e rever a disponibilização dos relatórios em DOC (por favor, documentos para consulta devem ser disponibilizados em formato PDF). 



Essas notícias que foram utilizadas pelo GGB para aumentar o número de mortes por homofobia de 2019 mostram não tanto que o Brasil é o inferno gay do mundo – não creio que os países do Oriente Médio que executam gays legalmente tenham estatísticas confiáveis de “mortes por homofobia” para apresentar –, mas que o Brasil é extremamente violento. Se você ler várias delas, perceberá que os casos tendem a acontecer entre vítimas e agressores pobres, o que volta a quebrar certa fantasia da pobreza virtuosa que uma ala da esquerda tenta vender, levando românticos a achar que nossas favelas renderiam milhares de inspirações para Charles Dickens. Na verdade, uma versão brasileira e periférica de Grandes esperanças estaria mais para isto: o menino Pip, negro, não vai à escola porque precisa entregar um pacote de cocaína para um traficante portando um fuzil. No meio do caminho, deixa o pacote cair num grande esgoto a céu aberto. Como represália, o traficante resolve espancar Pip até a morte e queimar seu corpo. Sua tia tem medo de denunciar o assassino porque sabe que ele tem amigos dentro da polícia. Ao descobrir que a família resolveu fazer um funeral umbandista para os restos mortais de Pip, um grupo de traficantes evangélicos e de milicianos invade o funeral e começa a destruir tudo ao redor. Depois disso a família é ameaçada de ser expulsa da comunidade se continuar seguindo religiões de matriz africana



A pobreza é o maior problema do Brasil, pois tantas vezes traz consigo baixa instrução, família desestruturada, falta de bons modelos próximos nos quais se pautar, mais facilidade para ser cooptado para o crime violento, mais facilidade de ser vítima de crime violento. Mas identitários tentam fazer hipnose coletiva para levar a sociedade a acreditar que o grande câncer do Brasil atual é o racismo, a homofobia, a discriminação de gênero. Despender tanta energia apenas em problemas secundários enquanto problemas muito maiores permanecem negligenciados favorece a quem? Às minorias – que sofrem muito mais quando são pobres – ou a uma presumida “elite intelectual” que diz falar em nome delas? Negros ricos, homossexuais ricos e mulheres ricas vivenciam uma parcela mínima do que negros pobres, homossexuais pobres e mulheres pobres passam todos os dias. 


No mercado das ideias, espírito empreendedor é notar que tipo de discurso já está saturado, mesmo que não resolvido – como a pobreza –, inventar um nicho para si e investir muito para que esse nicho se expanda, tornando-se produto de primeira necessidade. Quando uma criança for baleada numa favela, o consumidor não vai pensar tanto no produto da concorrência – a pobreza –, mas vai associar o fato ao seu produto – o racismo. Quando um gay favelado for assassinado a facadas por seu namorado ciumento, o consumidor não vai pensar tanto no produto da concorrência – a pobreza –, mas vai associar o fato ao seu produto – a homofobia –, sem pensar muito se ele atende à situação. Ter sucesso nesse mercado não depende de criar as melhores ideias, mas de saber vendê-las. Marketing é tudo. Assim como há quem deixe de pagar uma necessária consulta médica para comprar um tênis de marca, haverá quem deixe de adquirir discursos sobre a desgraça da pobreza porque a propaganda agora nos diz que discursos sobre guerras raciais e guerras sexuais são mais importantes. 


A identidade é um coringa – vale para explicar tudo que aconteça de negativo a quem a sustente – e também uma sintonia estranha: a burguesa que se casou com um homem que não divide a tarefa de cuidar do jardim acha que tem afinidade com a diarista que ao voltar para casa precisa fazer o jantar para um marido bêbado e violento. 


– Depois de lavar as calcinhas da minha patroa e esfregar seu teto, vou para casa fazer arroz com ovo e tomate para um marido fedendo a cachaça que começa a puxar meu cabelo se a comida demora a ficar pronta. 

– Entendo o que você vive. Meu marido fica postergando a poda do gramado para ver programas sobre futebol na TV. Precisamos de feminismo. Estamos juntas! 


O drama das identidades periféricas será bem aproveitado quando for preciso causar estardalhaço sobre a situação geral das minorias. No cotidiano, entretanto, o identitarismo servirá para atender aos ressentimentos de poucos e às demandas de quem tem vida fácil, mas gosta de procurar sarna para se coçar. Mulheres que posam seminuas em suas redes sociais com a legenda “macho, isto não é para você” – esperando fazer homens babar ao empoderar o culto à mulher difícil – e escritores negros buscando atalho para receber prêmios que não merecem: é por eles que os sinos identitários dobram. 



Depois das estatísticas feitas com má-fé pelo GGB, o que espanta em segundo lugar é a adesão da imprensa a elas. O trabalho que aqueles pesquisadores independentes fizeram com o relatório de 2016 e a amostra de erros que apresentei acima no relatório de 2019 não demandam graduação, experiência profissional, laboratórios, meses de revisão. Em poucos dias três empenhados estagiários de jornalismo das grandes redações poderiam rever essas estatísticas para averiguar se sua clipagem de notícias procede para afirmar que o Brasil é o campeão mundial de mortes por “homotransfobia”. Nenhum grande jornal dispôs desse serviço, contudo. FolhaEstadãoO Globo e BBC preferem correr o risco de desinformar a tirar esse tempo para revisar as conclusões de uma ONG que tem interesse na anunciação de catástrofes. Uma estatística que utiliza dados da imprensa para concluir uma farsa – ao menos em proporção – não é revisada pela própria imprensa. Uma instituição mais à direita nos costumes que publicasse conclusões bombásticas a seu favor receberia a mesma cortesia da confiança cega? 


Também não compreendo que o relatório sobre mortes por “homotransfobia” seja chancelado por Luiz Mott, criador do Grupo Gay da Bahia em 1980 e até hoje um de seus organizadores. Mott é referência em historiografia gay no Brasil; já li seus estudos e menções a seus estudos em compilados de História publicados por boas editoras. Posso confiar no que li? Se o organizador do GGB não controla as conclusões erradas que são tiradas de uma mera clipagem de notícias, posso confiar nas conclusões que ele tira de documentos históricos? Quem não exige rigor na coisa simples do grupo que coordena é capaz de oferecer rigor na coisa complexa dos estudos historiográficos que realiza? Confiança é difícil de adquirir e fácil de perder. Quando encontrar novamente o nome de Luiz Mott em livros de História, acordarei a pulga que dorme atrás da minha orelha. 



Se você chegou até aqui, não é hora de esticar os músculos e tomar uma água antes de continuar? 🙂 



Por último, a televisão. 


A construção das reportagens televisivas – apuração dos fatos, produção de texto, edição – também pode desinformar e manifestar um viés desonesto. Durante a semana tenho o hábito de ver o último episódio do programa Fantástico no aplicativo GloboPlay para a TV, que é gratuito para algumas atrações. Não me interessam todas as reportagens, e vendo o episódio após sua veiculação ao vivo posso pular aquilo com que não quero perder tempo. Gostaria de citar três exemplos recentes, todos de 2020, de matérias irresponsáveis. 


CASO 1 


Numa reportagem intitulada “Mulheres trans presas enfrentam preconceito, abandono e violência”, exibida em 1º de março de 2020, o médico Drauzio Varella conversa amigavelmente com uma trans chamada Susy. A parte mais conhecida do diálogo é esta: 


“Há quanto tempo você está sem receber nenhuma visita na cadeia?” 

“Oito anos, sete anos, bastante tempo.” [emociona-se

“Solidão, né, minha filha?” [Drauzio abraça Susy


Muitos de nós, sentimentais que não tinham atentado para o fato de Susy estar presa há muito tempo – o que tende a indicar crime grave –, ficamos emocionados com esse trecho da reportagem, acreditando que Susy não recebia visitas de parentes por causa de transfobia. A reportagem nos leva a pensar isso. Mas uma semana depois, no dia 08 de março, o site O Antagonista esclareceu a história: “Trans abraçada por Drauzio Varella no Fantástico estuprou e estrangulou menino de 9 anos”. Os detalhes são estes: 


“O Antagonista confirmou que a transexual Susy apresentada em reportagem de Drauzio Varella no Fantástico, no domingo passado, foi condenada por estuprar e estrangular um garoto de 9 anos. Ele deixou o corpo da criança apodrecer em sua sala por 48 horas. O pai foi avisado pelo próprio assassino que o corpo putrefato fora deixado à sua porta. […] “Segundo o processo ao qual este site teve acesso, ‘o revisionando praticou atos libidinosos consistentes em sexo oral e sexo anal com o menor Fábio dos Santos Lemos, que à época contava com apenas 9 anos de idade’.” 


Pode ser que Susy sinta solidão por causa de transfobia. Mas diante desse processo desencavado pel’O Antagonista acho mais confiável apostar que seu crime com ares de psicopatia é que afasta as visitas. 
Não só a reportagem nos induziu a erro como fez pessoas misericordiosas por todo o Brasil – inclusive crianças – começarem a escrever cartas para Susy e manifestar interesse em visitá-la na cadeia. O que passava pela cabeça de quem produziu a matéria? 


Se o produtor da matéria não sabia do motivo pelo qual Susy estava presa, deveria se informar antes de emocionar o país com aquele abraço não exatamente numa trans abandonada, mas em alguém que estuprou e matou uma criança. Não é muito jornalístico deduzir que uma trans que não é visitada por parentes só pode ser vítima de transfobia. 


Se o produtor da matéria sabia do crime asqueroso de Susy, teria pensado que valia a pena enganar a audiência porque “uau, essa cena está muito emotiva, será o clímax do vídeo”? A maioria das presidiárias trans está na cadeia por roubo e tráfico – não seria melhor ter escolhido uma delas para ilustrar como algumas trans são abandonadas pela família? Nessa hipótese, o diálogo poderia ter transcorrido mais ou menos assim: 


– Você recebe visitas na cadeia? 

– Não, nunca. 

– Você acha que é por causa do crime que você cometeu? 

– Não, eu acho que é mais por causa de transfobia. A sociedade e mesmo as nossas famílias não nos aceitam. 

– Os homens que cometeram o mesmo crime que você recebem visitas? 

– Sim, sempre recebem. 

– Solidão, né, minha filha? 


Drauzio Varella alegou que desconhecia os crimes que as entrevistadas tinham cometido, mas aos 11 minutos e 22 segundos de reportagem é ele que narra que outra trans retratada, Lolla, “veio parar na prisão por roubo”. Sabia do crime de Lolla, mas não sabia do crime de Susy? Drauzio já escreveu para a Folha uma coluna, em 2014, em que chamava o estupro de “o mais abjeto dos crimes” e parecia concordar com a ideia de que um estuprador é pior do que um assassino. Em 2019, ele escreveu outra coluna especificamente sobre violência sexual contra crianças, apresentando estes dados: 

“Violência sexual contra crianças existe em todas as classes sociais, mas na periferia de nossas cidades é epidemia. Segundo o Ipea, das 60 mil queixas de estupro apresentadas nas delegacias em 2016, cerca de 50% ocorreram com crianças abaixo de 13 anos, e 20% com adolescentes de 14 a 17 anos. Portanto, 70% das vítimas são menores de idade, estupradas dentro de casa, em sua maioria, pelo padrasto, pelo pai, tios, avós e vizinhos, tragédias encobertas pelos familiares e pelas próprias vítimas indefesas e mortas de vergonha.” (grifo meu) 

Lembre-se que esses são os dados notificados. Não me parece errado supor que a violência sexual infantil – como outras violências mais comuns em periferias – ocorrem em número muito maior do que as denúncias fazem crer. 


Quem considera o estupro de mulheres “o mais abjeto dos crimes” certamente teria adjetivos piores para qualificar o estupro de uma criança de 9 anos que depois foi estrangulada. Gostaria de acreditar na ingenuidade de Drauzio, supondo que ele não teria sido cooptado pelo identitarismo, politizador da misericórdia. Como seu canal no YouTube tem dado voz a autoritários dessa ideologia – diversidade talvez seja permitir que autoritários também “ocupem os espaços” –, abstenho-me de defendê-lo nessa situação. 


No Caso Susy, militantes de esquerda de repente se transformaram em pastores de ovelhas, descalços e pacíficos, pedindo aos outros que praticassem o perdão e entendessem que Susy já estava pagando por seu erro. Dr. Jekyll defende o direito ao esquecimento para estupradoras assassinas se elas tiverem a identidade correta. Mr. Hyde exige a demissão de jornalista que tropeça em terminologias, deseja a morte de pessoas famosas que fizeram um gracejo bairrista, acha que a piada “coisa de preto” de William Waack deveria tê-lo jogado no ostracismo, grita que injúria racial deveria dar cadeia. Não há valores mal balanceados aqui? 


CASO 2 


Há pessoas que confundem os exageros do politicamente correto com falta de educação. Pensam que ser respeitoso com mulheres, negros, homossexuais, gordos e pessoas com deficiência é aderir ao politicamente correto. Então não aderem. Acham que é seu direito humilhar os outros por causa de características físicas ou orientações sexuais historicamente marginalizadas, e fazem disso um comportamento reiterado, debochado e até orgulhoso. Se a ocorrência é leve, podemos avaliar se é uma coisa inofensiva e deixar pra lá – sem transformar qualquer piada inocente com minorias em caso de polícia – ou repudiar a manifestação isolada para que o perpetrador perceba que aquilo é inadequado. Se a ocorrência é grave, tendemos a repudiar o perpetrador inteiro. Mas essa separação está perdida numa época de sinalização extrema de virtudes. Tem quem pense que um xingamento politicamente incorreto deva terminar em cadeia. 


Parece que alguns dos produtores do Fantástico pensam isso. No dia 31 de maio foi ao ar a reportagem “Não se cale: especialistas e vítimas falam da importância de denunciar o racismo”, dando exemplos de pessoas negras que sofreram injúria racial. A matéria começa com o caso da médica Thelma, vencedora do BBB de 2020, que teria sofrido “ataques racistas” durante uma live. O exemplo que o Fantástico deu de ataque racista sofrido por Thelma foi: “essas negras são tão frescas”. O autor do comentário foi chamado de “agressor”. Depois mostraram comentários realmente racistas: num grupo de Whatsapp, uma adolescente negra que estudava numa escola particular do Rio de Janeiro foi referida, por colegas, como escrava que deveria ser vendida, além de outros comentários humilhantes à sua cor. Outro episódio relevante foi o da atriz Cacau Protásio, que fez uma esquete humorística no Corpo de Bombeiros e depois foi chamada por um bombeiro, em tom claramente ofensivo, de “gorda, preta, filha da puta, bucha de canhão”. 


Então o narrador da matéria diz: 

“Casos como esses apresentados até agora costumam ser enquadrados pela Justiça Brasileira como crime de injúria racial, e não como crime de racismo, que é mais grave. Para este advogado [mostra o advogado Fabiano Machado da Rosa], isso dificulta punições mais efetivas.” 

O advogado se posiciona: 

“O crime de injúria racial tem uma pena mais branda, normalmente uma pena de reclusão de 1 a 3 anos, que nunca acontece porque tem menor potencial ofensivo e acaba virando um acordo… quando isso acontece.” 

Volta para o narrador: 

“Foi o que aconteceu no caso dos quatro torcedores do Grêmio que xingaram o goleiro Aranha de ‘macaco’ durante um jogo da Copa do Brasil há 6 anos. Eles foram obrigados a se apresentar numa delegacia em dias de jogos do Grêmio durante 10 meses, e se livraram dos processos por injúria racial.” 

Se livraram dos processos.” Quem criou o texto da matéria parece não fazer ideia do que é ser processado, especialmente se você não for rico. Primeiro que, como dizia o jurista italiano Francesco Carnelutti em O problema da pena, passar pelo processo penal já é parte da pena. Há desgaste individual, com familiares e conhecidos, com as situações desagradáveis que se enfrenta no decorrer do processo. É por isso que o Direito Penal deveria ser o último ramo do Direito a se buscar, tendo como objeto ocorrências realmente graves que mereceriam o estatuto de crime. Segundo que, no caso dos torcedores do Grêmio, a punição social extrapolou a punição legal pela injúria racial que cometeram. A mulher que apareceu na TV, durante o jogo, chamando o goleiro Aranha de “macaco”, está até hoje, seis anos depois do caso, tendo seu rosto exposto na mídia quando se comenta o racismo no futebol – essa matéria do Fantástico mostrou seu rosto novamente –, perdeu o emprego, já mudou de casa, já mudou a aparência para não ser reconhecida na rua. Achar que um xingamento – ainda que abominável, até porque coralizado dentro de um estádio – deva desencadear tudo isso me lembra a desproporcionalidade da Inquisição, que está de volta remodelada, mas cheia de viço e vontade de trabalhar. Alguém que mata pessoas no trânsito por dirigir em alta velocidade não passa por tanto. 


Essa diferença de avaliação não diz respeito apenas ao dolo ou à falta dele, mas à sanha identitária, que gosta de punições duras para delitos praticados contra minorias. Como não existe jogo de futebol em que o árbitro não seja chamado de “veado” – até em jogos da Copinha vi bestializados gritando “boiola filho da puta, por que não fica de quatro em campo?” –, estou tentando prever quando a missão inquisitorial da esquerda purificadora chegará nessa gente e dirá que ela deve ir para o presídio. É a mesma esquerda que repudia a superlotação das cadeias e diz que se prende demais no Brasil? 


Mesmo que a punição social não tivesse acontecido nessa dimensão, ser obrigado a comparecer à delegacia toda vez que houvesse jogos do Grêmio durante 10 meses é, em si, uma punição desproporcional para a injúria. Quem deveria ter punido os torcedores era o próprio Grêmio, suspendendo sua possibilidade de frequentar os jogos por dado período. Estou com Francesco Carnelutti também nisso: injúria deveria ser contravenção, não crime. Seu potencial ofensivo é menor, a Justiça deveria se ocupar de delitos graves e é possível resolver a maior parte do problema da injúria pelo espírito social. 


Você deve se lembrar. Até meados da década de 2000 era muito difícil uma mulher mediana sair bem trajada na rua, no verão, e não receber assovios e cantadas. Era muito difícil uma mulher mediana ir a uma balada e não receber galanteios com o cara já se sentindo livre para alisamentos indevidos. Era muito difícil ser adolescente do sexo feminino sem perceber que mesmo alguns de seus professores demoravam os olhares onde não deviam e às vezes faziam comentários sobre seu corpo. Era muito difícil ser gordo, ter deficiência física ou mental e ser anão sem ser lembrado disso a todo instante: pessoas na escola, no trabalho e na rua se sentiam à vontade para fazer piadas, apontar, gargalhar, gritar xingamentos. Era muito difícil tratar de bullying nas escolas, porque mesmo os professores participavam do bullying ou fingiam que não viam o que estava acontecendo, parecendo achar que “tem que ser humilhado mesmo e apanhar, esse veadinho” ou “a magricela está sendo chamada de feia e dentuça, mas é feia e dentuça mesmo, os colegas não estão errados”. Era muito difícil ser uma chefe mulher sem receber, com facilidade e pelos cantos, comentários de “puta”, “mal amada” ou “sapatão”. Era muito difícil ser gay sem ouvir comentários como “nojento” ou ser tratado pelos vizinhos como se fosse um leproso na Antiguidade. Era muito difícil ser negro retinto e não ouvir piadas animalizantes ou associações da sua cor à falta de inteligência ou à preguiça. Era muito difícil ser negro claro, ouvir aquelas mesmas piadas e depois receber do piadista o paliativo “é claro que não estou falando de você, você nem é negro, você é moreno”. Era muito difícil ser transsexual ou travesti e conseguir respeito dos outros – quando se era convidada para programas de TV, não era por inclusão, mas para ser alvo de escárnio. Nada disso se extinguiu, mas diminuiu tanto que é cativante pensar do que a mudança no espírito social é capaz. 


É verdade que temos um problema com a fúria da internet – pessoas despejam aqui o ódio descabido que ao vivo não é externado –, mas, desculpe o otimismo, se o auge da internet fosse nos anos 90 tudo seria muito pior para negros, mulheres, gordos, pessoas com deficiência, homossexuais, travestis. 


Essas coisas todas se transformaram por uma vontade coletiva de mudança dos valores morais, não por leis criminalizando a estupidez, a falta de educação e a trollagem. A injúria pode ser crime há muito tempo, mas também por muito tempo quem fez uso dela foram os ricos e os famosos. Em geral, pessoas pobres e de classe média que eram injuriadas não recorriam à Justiça para “reparar os danos da injúria”, e mesmo assim os ares mudaram para elas. Não é obrigatório criminalizar um comportamento para corrigi-lo. Muitos dos comportamentos do passado que estão hoje corrigidos não foram criminalizados. Se foram criminalizados, como no caso da injúria, não foi isso que mudou posturas. 


Para alguns redatores do Fantástico a injúria racial deveria ser melhor punida. Pelas entrelinhas da matéria citada neste tópico, parece que desejam que o injuriador vá para a cadeia. De um lado cresce o discurso pueril do abolicionismo penal, de outro pulula esse movimento “cadeia para quem xinga minorias”. 


Máxima justiça, máxima injustiça”, escreveu Cícero. Quem pede detenção para um xingamento não raciocina sobre a jornada que leva à prisão e tudo que ela arranca sem anestésico ou vodca: liberdade de locomoção, emprego, reputação, direito de escolha do que comer e vestir, amigos, convivência familiar, direito à intimidade, direito à fruição estética, direito à humanidade, direito de dispor do próprio corpo e não ser estuprado ou violentado. Se alguém raciocina sobre tudo isso e mantém o desejo inquisidor – “sim, quem comete injúria racial merece todas essas punições” –, aí o negócio é fazer um pacto com Satanás para poder ao menos aproveitar alguma compensação terrena (“beleza estonteante”, “saber enciclopédico”) pelo Inferno no qual será jogado pela eternidade. Isso se o Deus que estiver valendo for o do Novo Testamento, é claro. O do Velho aprovava vinganças desproporcionais envolvendo matanças de comunidades inteiras ao não se sentir devidamente amado. Mas, pensando bem, é sensato lembrar que o tirano aprova apenas a própria tirania, e não gosta muito de ver seus súditos tentando ser como ele é. De qualquer forma, justiceiros sociais, se acreditam em céu, inferno e purgatório, preparem-se. O infinito fogo vos contempla. 


Os produtores do Fantástico que apresentam aos telespectadores a avaliação de que os torcedores do Grêmio não foram severamente punidos – tinham que ter sido mais punidos – são os mesmos que acham que uma trans que estupra e mata uma criança merece banho cosmético de vítima para representar bem uma narrativa dentro de uma reportagem? É possível. 



Apesar de manifestar minha opinião pela descriminalização da injúria – de qualquer tipo de injúria –, sou favorável à punição dentro das instituições se a injúria ocorrer em seu quadro e sou favorável à possibilidade de pedido de danos morais se a injúria grave for contra pessoas em posição inferior na hierarquia trabalhista que não têm condições de se defender em pé de igualdade. Como escrevia La Rochefoucauld, “os fracos não podem ser sinceros”. Um funcionário não pode ser chamado de “burro” por uma chefia incompetente sem que nada aconteça dentro dessa relação de poder desigual, humilhações repetitivas em empresas devem ensejar causa por danos morais, coordenadores escolares que percebam que alunos negros são vítimas de injúria racial devem suspender ou expulsar os infratores, dependendo da gravidade e da repercussão do que disseram, e deixar claro para todos por que tomaram aquela medida. Empresas e escolas também são responsáveis por ceifar os ramos que tentam renascer no túmulo da indecência. 


No caso do jogo Grêmio X Santos, o time que viu um de seus jogadores receber ofensas racistas em coro está em seu direito de se recusar a continuar a partida até que os injuriadores sejam retirados do estádio. Com algumas ações desse tipo, logo a prática estaria quase totalmente coibida – afinal, quem quer pagar ingresso para ser retirado da arquibancada no meio do jogo? Aqueles que se considerassem espertos deixando os xingamentos racistas para o final do segundo tempo ainda poderiam sofrer sanções do clube pelo qual torcem. 


Não precisamos invocar o Estado ou o presídio toda vez que uma ofensa ocorre na sociedade. A própria sociedade pode se organizar para restringir comportamentos que não considere mais adequados. E se essa sociedade, tão variada e às vezes animalizada nos seus gritos de guerra, tomar decisões que extrapolem suas funções moderadoras, aí podemos voltar ao Estado para freá-la. Estabelecemos um contrato social em que sempre deve haver quem vigie os vigilantes. É com erros e acertos que vamos regulando os personagens dessa teia complexa que nenhuma utopia política consegue alinhar. 



Agora, vão me desculpar, mas o famoso Rubi processar, civil ou criminalmente, o famoso Esmeralda que o xingou de “vagabundo”… meu deus. Acionar a Justiça pra isso? Em um país em que 31% da massa carcerária é de presos provisórios, juízes e servidores públicos têm que perder tempo analisando os casos de quem está chateado por ter sido chamado de “idiota”? 


E sou uma admiradora de longa data de Laerte, a cartunista. Tenho todos os livros que publicou, tenho todas as edições das revistas Striptiras e Piratas do Tietê, eu só comprava no sebo a revista Geraldão, do Glauco, porque às vezes ali no meio havia alguma história da Laerte (Geraldão era muito ruim). Mas processar o jornalista Reinaldo Azevedo por causa dos xingamentos “fraude moral”, “baranga moral”, “fraude de gênero” e “fraude lógica”… Que bobagem. Seria muito melhor ter feito uma excelente história em quadrinhos tirando sarro dos chiliques e das convicções de Reinaldo. Poderia até tê-lo desenhado numa versão trans, tentando imaginar que tipo de trans ele seria. Laerte processar Reinaldo por expressões grosseiras é como dizer que ele não deveria ter o direito de detestá-la em público. Mesmo repudiando o que Reinaldo escreveu, na minha opinião ele deveria ter o direito de detestar alguém na internet sem ser processado por isso. Se meu xingamento não envolve ameaça ou incitação à violência, não me agrada a ideia de o Estado decidir quem posso xingar.


Em qualquer rede social que você visite, basta menos de um minuto para acessar comentários injuriosos. Se a internet está passando por um momento de campanha moralista – quase todos os dias temos alguém para ser perseguido a fim de que os perseguidores se sintam superiores a quem erra em público –, aí é que a tempestade de injúrias cai como se fosse um sinal do apocalipse. Não acho que isso deva ser resolvido processando todo mundo. E lembro que alguns dos que ficam animados com as condenações por injúria de seus inimigos eleitos – inimigos que às vezes nem os conhecem – são pessoas que, “sem perceber”, cometem injúrias com frequência na internet. 


Atente: é por existir uma tipificação da injúria no Direito Penal que você não consegue garantir que sairá ileso ao usar caixas de comentários para espinafrar políticos, ministros do STF que tomam decisões estranhas, artistas. É possível que nenhuma grave punição aconteça ao final, mas só de ser processado você entenderá o que Carnelutti queria dizer com a ideia de que passar pelo processo penal já é parte da pena – se for inocente, então, é uma pena que você paga sem merecer e sem compensação retroativa. Mas também é possível que você tenha que fazer como a atriz Monica Iozzi, obrigada pela Justiça a pagar 30 mil reais ao ministro Gilmar Mendes porque usou o Twitter para criticar uma decisão sua que favorecia o médico Roger Abdelmassih, processado por estupro de pacientes. 


Vem a pergunta: Iozzi passou a ser uma defensora da descriminalização da injúria após o episódio, pois essa tipificação reprime a liberdade de xingamento e permite punições desproporcionais? Não. Ao ser questionada sobre a condenação, no programa Conversa com Bial, ela fez a seguinte conjectura

“A palavra ‘liberdade’ já não deixa claro que você pode se expressar como quiser, a menos que esteja sendo preconceituoso, cometendo crime como racismo?” 

A menos que esteja sendo preconceituoso.” Quem tem esse pensamento quer que um mesmo Estado viva sob duas legislações: a legislação para “os opressores” e a legislação para as minorias, totais ou eventuais. Às minorias tudo seria permitido – injuriar, difamar, caluniar, acusar de estupro sem provar. Já sobre opressores – homens, brancos, heterossexuais, ricos, pessoas em posição de poder ou prestígio – cairia um código draconiano moderno, em que eles não poderiam processar ninguém, mas poderiam ser processados pela mais banal piada. Aos amigos, tudo; aos inimigos, a lei. Iozzi não queria pagar penalmente por ter escrito “cúmplice?” embaixo da foto de um ministro que acabava de tomar decisão favorável a um acusado de estupro, mas acha que “para quem é preconceituoso” o Direito Penal deve valer. A experiência não lhe ensinou muita coisa. Que pena. 


*


Talvez alguém diga “OK, a criminalização de toda injúria parece mesmo uma coisa descabida, mas injúria racial é grave e deveria ser punida de alguma forma pelo Estado”. Entendo o pensamento. Nós costumamos considerar algumas injúrias piores do que outras, e a injúria racial é perversa, dolorida, traz lembranças históricas. Mas como fica uma pessoa que é humilhada por ser gay? “Bem, talvez a injúria homofóbica também deva ser punida.” E como ficam as mulheres que são associadas a putas ou dragões por homens machistas que acham que a primeira função da mulher é decorar as ruas e as casas? “Bem, acho que a injúria de gênero deve ser punida também, então.” E as pessoas gordas? Você faz ideia de todos os xingamentos que as pessoas gordas recebem no decorrer da vida? Uma pessoa gorda que incomoda receberá como primeiro xingamento alguma palavra relacionada ao seu corpo. “Bem, acho que injúria gordofóbica deve ser punida também.” E que tal a loira chamada de “burra”, o governador branco chamado de “lixo, merda, fascista”, a rica chamada de “aborto humano”? “Ah, mas essas pessoas não são historicamente marginalizadas.” Então apenas as pessoas historicamente marginalizadas têm sentimentos? Um homem rico não tem o direito de se ofender ao ser xingado? Uma mulher loira não tem o direito de se ofender ao ser chamada de burra? Supremacistas negros são livres para dizer a um branco que ele “deveria ter vergonha da própria cor asquerosa” e esse branco não teria o direito de se ofender?


Não cabe à legislação escolher a quem é permitido se ofender e qual é a justa punição para um dano subjetivo como a ofensa. Injuriar deveria ser um direito de todos. Ofender-se também. Tratar tudo isso como caso de Estado é desvario.


CASO 3 


Você está assistindo ao jornal. Uma matéria está abordando a temperatura em São Paulo e mostra, em flashes, as opiniões de transeuntes sobre a recente onda de calor. Uma senhora aparece por dois segundos, com o microfone apontado para ela, apenas para dizer: 


– Menina, parece que a gente está no deserto. 


Dificilmente isso foi tudo o que a senhora disse para a repórter que a interpelou, mas os editores do jornal não têm motivo para colocar o diálogo inteiro no ar. Queriam apenas mostrar a opinião de uma senhora comum sobre o assunto da reportagem, queriam provar um ponto, queriam dar dinâmica à matéria. A edição dos jornais é estudada, trabalhosa e, claro, pode mostrar proselitismo mal embasado. 


Em matéria veiculada pelo Fantástico em 18 de outubro de 2020 – “Polícia brasileira nunca matou tanto quanto em 2019; quase 80% eram negros” –, tivemos alguns desses flashes com a historiadora Ynaê Lopes dos Santos, da Universidade Federal Fluminense (UFF). A matéria tem 18 minutos. Os flashes de Ynaê não chegam a somar um minuto, mas esta fala foi uma das escolhidas para aparecer na edição final da reportagem: 

“Quando a gente, por exemplo, abre um livro didático e só vê negro no lugar de escravizado, isso já está informando a gente de que não tem problema esse homem negro, do nosso imaginário e do nosso passado, aqui no presente também sofrer as mesmas coisas que aquele escravizado sofria.” 

Essa análise não tem nenhum sentido. O livro didático informa sobre o passado brasileiro e o passado brasileiro é racista e escravista. Se algum aluno tirar da história escravocrata do Brasil a conclusão de que pessoas negras deveriam ser tratadas como mercadoria ainda hoje, o problema não está no livro didático, está no aluno. Por toda a minha vida escolar, em instituições particulares e públicas, a escravidão registrada em livros didáticos era abordada pelos professores como uma monstruosidade, uma coisa difícil de imaginar em sua naturalidade passada, e somente alunos muito pontuais – provenientes de famílias ausentes na educação de valores ou presentes na educação de baixezas – é que achavam alguma graça naquilo. 


Se o jornal está entrevistando um especialista ao vivo, não há como ter responsabilidade pelo que esse especialista diz, já que não se pode escolher quais partes de sua exposição irão ao ar – tudo vai ao ar. Se o jornal entrevistou um político e fará uma reportagem prejudicial a ele, faz sentido apresentar flashes que mostrem os absurdos que disse, porque é ao redor desses absurdos que a própria reportagem será desenvolvida. Mas uma matéria instrutiva sobre os abusos da polícia – matéria que é editada de forma a compor uma explicação profissional – não deveria ter uma associação relapsa entre livros didáticos e violência policial, como se policiais fossem mais brutais com homens negros porque viram na escola que, no passado, homens negros eram geralmente escravos tratados como mercadoria. 


Para as intenções da reportagem do Fantástico, a historiadora Ynaê não era uma política escorregando em opiniões equivocadas: estava ali com fins pedagógicos, para passar ao telespectador uma análise especializada sobre os suplícios da negritude. Então por que mantiveram aquela sua fala sem sentido? Concordaram com ela? Pensaram que havia algum brilhantismo ali? Desculpe, mas erraram. E acho que sabemos por que erraram. 


*** 


Esse tipo de jornalismo ainda vai piorar muito, mas depois de uma crise talvez volte à sua razão de ser, pois a História tem desses ciclos de trevas e de luz. Enquanto isso não acontece, não podemos estar passivos diante da TV ou da Folha de S.Paulo, acreditando que o trabalho está pronto e que estamos vendo ou lendo a melhor apuração possível dos acontecimentos. 


Jornalistas deveriam se comprometer com a verdade, e a verdade não consegue satisfazer plenamente nenhuma agenda. Se a verdade de um jornal consegue chancelar uma agenda inteira, deve ser porque ela é tão verdadeira quanto o artista que põe um saco de arroz no meio do museu ou o cristão que não faz caridade. 
Em tempos de jornalismo dito isento na propaganda comercial, mas cooptado nas redações pela propaganda ideológica, é bom deixar as botas preparadas na porta caso você mesmo precise sair para coletar outras informações. Se um dia perceber que passa mais tempo fora de casa fazendo isso do que relaxando com seu cachorro no sofá, sinta a miséria do mundo baixar em suas costas, mas lembre-se que depois de muita desgraça as coisas começam a melhorar. 


Encerro com uma citação de William Zinsser, do livro Como escrever bem: o clássico manual americano da escrita jornalísticae de não ficção, que eu gostaria que os jornalistas responsáveis pelas matérias citadas nesta postagem lessem: 

“A credibilidade é algo tão frágil para um escritor quanto para um presidente. Não infle um incidente para torná-lo mais extraordinário do que ele realmente é. Se o leitor o flagra, nem que seja em uma única afirmação falsa que você está fazendo passar por verdadeira, tudo o que escrever depois se tornará suspeito. É um risco grande demais, não vale a pena.” 

Talvez a recomendação valha também para magistrados ao escrever sentenças, nos tribunais e no Twitter. 

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NOTAS

1. Num país miscigenado como o Brasil, apenas os tribunais raciais das universidades têm a certeza de fazer uma segura separação entre quem é branco, pardo ou negro. Minha tendência em denominação é chamar negros retintos de negros, brancos e morenos de brancos, e pardos… depende. Há pardos que parecem mais brancos, há pardos que parecem mais negros. Se um pardo claro quer se chamar de branco, não vejo problema nisso: ele tem ancestrais brancos, olha para o próprio fenótipo e percebe que é mais assemelhado a brancos. Se um pardo quer se chamar de negro, também não vejo problema se nele se destacarem mais características de seus ancestrais negros do que de seus ancestrais brancos. O que não me agrada muito é afroconveniência – um pardo claro que começa a se denominar negro porque percebe que isso tem contado pontos em alguns meios –, negação de ancestralidade branca – como têm feito alguns ativistas pardos que desejam nos convencer de que acabaram de chegar da África subsaariana – e negação da autodeclaração alheia – quando, visando a inflar o número de pessoas que se consideram negras no país, grupos apagam a declaração daqueles que se disseram pardos ao IBGE e põem essas pessoas na categoria de negros. 


Beto Freitas era pardo, resultado de miscigenação de brancos com negros. Como parecia mais negro do que branco, optei chamá-lo de negro, como fizeram os jornais. Mas não haveria nenhum problema se eu o chamasse de pardo, pois, a rigor, é essa mistura que seu fenótipo refletia. 


2. Para provar que um crime ocorreu por motivos raciais, é preciso que se evidencie a discriminação. Não é possível deduzir, sem evidências e sem contexto, que um homem negro vitimado por um homem branco foi morto porque foi discriminado racialmente. Mas componente discriminatório manifestado durante uma violência não necessariamente significa que a violência tenha acontecido por causa da discriminação em primeiro lugar. 


Imagine uma mulher obesa que tem alguns cachorros em casa. Esses cachorros estão sempre fugindo para o terreno de sua vizinha, uma jovem muito magra que detesta cachorros. A jovem magra faz reclamações à mulher obesa, que não providencia uma forma de seus cachorros não mais invadirem o terreno da vizinha. Um dia, quando os cachorros escapam pela enésima vez e enchem o gramado da vizinha de cocô, ela surta, vai à casa da mulher obesa e começa a espancá-la. Enquanto espanca, grita: “já falei para você respeitar meu jardim e manter esses cachorros presos, sua [xingamentos gordofóbicos]”. A mulher obesa não morre, mas fica com muitos hematomas do espancamento. Faz sentido dizer que ela foi espancada porque sua vizinha tinha preconceito contra pessoas gordas? O fato de a mulher obesa ser obesa pode ter aumentado o ódio de sua vizinha, mas não dá para dizer que a violência começou por causa de gordofobia. 


2.1. O genocídio de Ruanda é um exemplo em que o amplo contexto explica os casos particulares. Você não precisa dizer “não sabemos se todos os casos de assassinatos se deveram a discriminação étnica” para assim querer relativizar o massacre que foi abertamente por motivos étnicos. Casos pontuais de um vizinho que matou o outro não por execrar sua etnia, mas para aproveitar a situação de caos e assassinar quem lhe devia dinheiro são exceções que confirmam a regra. O mesmo se pode dizer do Holocausto. 


2.2. Casos particulares sem evidência de discriminação racial agora são usados para explicar um contexto amplo de guerra racial moderna. Sociedade, História e até a psicologia do estereótipo são simplificados – quando não esquecidos – para selar uma narrativa que parece ter sido criada por moleques. A polícia que persegue muito mais jovens negros do que mulheres negras e idosos negros de ambos os gêneros é chamada de “genocida” enquanto corporação. É análise simplória, barata e irresponsável. 


3. Chegará um momento em que jovens identitários do ramo jurídico conseguirão cargos na magistratura. Já estamos acompanhando boas cabeças se perdendo nos delírios da seita, que converte como as seitas convertem: arrebatando


4. Gosto de citar críticos da esquerda, mas gosto especialmente de fazer isso quando o crítico se considera de esquerda. Daniele Giglioli, autor de Crítica da vítima, é um exemplo. Em 2018 presenciei um bate-papo com ele na Livraria da Vila. Um dos mediadores quis integrá-lo a uma crítica à esquerda como um todo – talvez achando que sua vitimologia fosse aplicável somente a esse lado, o que não confere –, mas Giglioli fez questão de ressaltar que ele mesmo era de esquerda e valorizava muitos dos valores esquerdistas. Ele ter esse posicionamento e conseguir repudiar com objetividade a competição das vítimas é corajoso. Certamente alguns radicais de esquerda gostariam de poder defenestrá-lo para a direita por isso. Como escreve o conservador canadense Mathieu Bock-Côté, em O império do politicamente correto

“Basta que uma esquerda não queira seguir o ritmo indicado pela vanguarda progressista para que seja deportada para a direita, na maior parte do tempo a contragosto.” 

Todas as seitas abrigam radicais com mania de pureza que querem expulsar aqueles que destoam um pouco das regras d’O LIVRO DOS GENUÍNOS MEMBROS DA SEITA. Esses fanáticos sentem prazer em procurar pequenas falhas em outras pessoas de seu grupo, e têm a ambição de montar um reino perfeito em que todos têm que pensar exatamente como eles – ou “não prestam para participar do nosso culto”. Não é suficiente concordar com 95% dos ditames da seita: quem não concorda com tudo deve ser expulso para que o grupo seja depurado. Alguns esquerdistas se encaixam nessa descrição, mas não só eles. Escreverei melhor sobre isso no futuro, numa postagem sobre como tudo pode se transformar em religião. 


5. Acredito que alguns jornalistas se ressentem pela incumbência de redigir notícias em vez de escrever colunas. Então tentam remediar essa amargura imprimindo uma forte pegada pessoal em matérias que deveriam nos informar a apuração dos fatos. Sentem-se mais-um-entre-anônimos se não puderem colocar no texto um tanto de emoção – “Dona Neide sempre faceira, balançante, com um sorriso sincero que seria capaz de converter a todos para suas causas, naquele dia chorava como um bebê faminto” –, de firula – “o frasquinho onde carregava o loló que lhe permitia a fuga da realidade tinha uma mancha embaixo, e essa mancha parecia uma cruz que derretia” – e de opinião – “dizem que o racismo é o crime perfeito, e talvez seja esse o caso aqui, pois o carpinteiro José, negro, foi atingido na calçada pelo piano que caiu de uma cobertura onde moram milionários de sobrenome italiano”. Textos hipotéticos, mas que representam algumas matérias que tenho lido. 


Esses jornalistas acham que estão “apagando seu eu” se não fizerem artesanatos chamativos para pedir ao leitor “ei, não esqueça de mim, estou aqui!”, como se eles tivessem que aparecer mais que a notícia. 


É possível escrever um texto que se atenha aos fatos puros e seja bem construído no estilo, diferenciando a estética de um jornalista quando comparado ao trabalho de seus colegas. É possível fazer fatos frios se tornarem vivos no meio de um artigo rico que não abre mão da perseguição à verdade. Carregar uma melancia na cabeça para ser notado é a redução ao absurdo dessa ideia. 


A noção de sutileza na arquitetura da notícia virou tédio na mente de quem quer <BRILHAR> e planeja fazer uma releitura kitsch do rococó. Logo vão convidar Bráulio Bessa para trabalhar na redação dos grandes jornais. Acho que alguns discípulos dele já estão trabalhando. 


5.1. O mote é “não queremos que saia daqui informado, mas encantado”. Uma mulher que quebrou o pé numa enchente se transforma, no editor de textos do adepto da reportagem-poético-jeca, em alguém que precisa nos levar a abrir uma caixinha de lenços para conter as lágrimas. É o jornalismo que quer “fazer o mundo melhor”. Legal, mas o mundo melhor só é alcançado pelo recurso do patético e do açucarado? Pra mim pode ser sem açúcar, por gentileza. 


6. Critiquei Folha de S.PauloÉpocaFantástico. Mas continuarei utilizando os serviços de todos. Do que escolho ler/ver deles, ainda tiro mais coisas boas do que ruins. E visitar portais de notícias alternativos em retaliação ao erro dos grandes jornais é como querer curar dor de cabeça decepando a própria cabeça. 


7. O portal de notícias UOL, do Grupo Folha, publicou há poucos dias a manchete “Jornalista faz ataque xenófobo contra time do Bahia em vídeo”. O “ataque” foi essa fala: 

“’Tomara que [as jogadoras do Bahia] estejam bem baianas. Pensando assim: “ah, vamos deixar o jogo para depois de amanhã”. Enquanto isso, a gente já está no 220V’, disse Aline, aos risos.” 

Depois a manchete foi alterada para “Jornalista faz vídeo xenófobo contra Bahia e cogita encerrar canal: ‘errei’”. 
O redator da matéria do UOL começa dizendo que a jornalista “se envolveu em uma enorme polêmica”. Atenção: “enorme”. Parece chamada da Sessão da Tarde


O tédio produz monstros. A vida fácil, longe da guerra e da fome, faz com que algumas pessoas criem problemas para ter com que se ocupar. Fazer piada inofensiva com baianos – piada que muitos baianos fazem com eles mesmos, inclusive em camisetas vendidas em pontos turísticos – é “ataque xenófobo” para alguém que talvez sinta falta de viver num lugar com uma genuína xenofobia para denunciar. 


A jornalista “xenófoba” já se desculpou, já chorou, já foi humilhada nas redes sociais, já recebeu sermão das jogadoras do Bahia. O técnico do time feminino do Botafogo, que participava da live, disse que não repeliu o comentário dela porque “foi induzido a erro” (?). É um mau-caratismo pior que o outro. 


Aguardo o dia em que esses carolas da ninharia, auditores do ínfimo deslize alheio, sejam repudiados em seu exibicionismo moral constante. Será o dia em que “quem se exalta será humilhado, e quem se humilha será exaltado”. Na sociedade do espetáculo, a virtude é algo que se anuncia aos ventos. O “não julgueis” foi lido como “julgue o tempo todo, qualquer bobagem, para assim mostrar que você é superior àqueles que está julgando”. A virtude exibida ainda é virtude? E haveria, de fato, virtude no comportamento de transformar um pecadilho num erro gravíssimo? O farisaísmo é tendência outra vez. 


Tudo isso seria muito humano, mais-do-mesmo na História e hobbesiano se ficasse nas massas das redes sociais. Mas os jornais estão aderindo ao espírito. Aderem e ainda assim pensam que se diferenciam das redes sociais pelo “profissionalismo”, quando o fato é que os jornais estão se transformando em algo muito parecido com as redes sociais – e não estou me referindo às caixas de comentários desses jornais. Talvez Bari Weiss esteja certa ao dizer que é o Twitter que tem editado o The New York Times


7.1. Ao mesmo tempo, basta um jornal escrever sobre alguma cidade no Sul cuja maioria da população apoia Bolsonaro para surgirem comentários do tipo “não esperava outra coisa desses nazistas”. Parece que isso é permitido. Baiano não pode ser chamado de descansado em piada, mas a sério toda uma região do país pode ser chamada de NAZISTA. E sempre aparecerá alguém para digitar no computador, com a coluna de quem está dirigindo um Fusca, que “não existe injúria reversa num Brasil de injúria estrutural”. 


7.2. O caso da jornalista que fez piada com o time do Bahia me lembrou outro que ocorreu em 2014. O comentarista esportivo Raiam Santos, da ESPN, foi perguntado pelo colega Ari Aguiar: “O termômetro hoje bateu 39ºC aqui [em São Paulo]. No Rio está assim também?” Raiam, carioca, respondeu, em tom de brincadeira: 

“Lá é a mesma coisa, a diferença é que nós temos a praia de Ipanema e vocês têm o rio Tietê”. 

Apenas isso. Mas telespectadores pediram sua demissão por esse gracejo e semanas depois ele estava fora da ESPN. Tenho pena do sujeito vazio e frustrado que ouve uma piada dessas e resolve usar o pequeno poder que a internet lhe deu para arruinar o emprego de alguém. 


7.3. Em 2020, o jornalista Leandro Narloch foi demitido da CNN ao comentar a decisão do STF de permitir que homossexuais masculinos doem sangue. De acordo com o novo entendimento, bancos de sangue passariam a se pautar em conduta de risco e não mais no estereótipo promíscuo dos homens gays. Homens que tiveram um mesmo parceiro nos últimos anos poderiam participar do quadro de doadores sem serem discriminados apenas por sua orientação sexual. 


Narloch foi favorável à decisão. O que agitou a internet ignara foi o fato de o jornalista ter usado a expressão “opção sexual” e ter informado que “homens gays têm uma chance muito maior de ter AIDS”. 


“Opção sexual” é erro terminológico, já que a maioria dos homossexuais sente atração por pessoas do mesmo sexo por natureza. Falando dessa maioria, o melhor seria Narloch ter usado o termo “orientação sexual”, que não conota escolha, mas destino. Ainda assim, o faniquito nos sofás aconteceu mais por espírito linchador do que pelo senso de justiça a uma categoria minoritária, pois, sim, há pessoas que se relacionam com outras do mesmo sexo por opção. Geralmente são mulheres, e às vezes tomam a decisão porque “se cansaram” dos homens. Acho justo e penso que mais mulheres deveriam fazer isso. Quem sabe tal medida resolvesse o problema das que são obcecadas por limpeza e ficam deprimidas ao ver que seus maridos não têm a mesma obsessão, e aí acham que o feminismo tem que gastar energia com esse oh-céus-oh-vida enquanto o Brasil tem quase 2,5 mil pontos vulneráveis à exploração sexual de crianças e adolescentes em rodovias e estradas federais, e o Ligue 800 (Central de Atendimento à Mulher) recebeu 1,3 milhão de ligações em 2019 para relatar violência doméstica. Vá morar com outra mulher que também gosta de ficar de cócoras esfregando rodapé com escovinha e deixe o feminismo se ocupar de coisas mais importantes. 


Quanto à fala de que homens gays têm chance maior de ter AIDS, onde está o problema? O fato não compõe uma boa narrativa? Em 2018 a Folha de S.Paulo publicou: “Em SP, 1 a cada 4 homens que transam com homens tem HIV, revela estudo”. No UOL, o blogueiro Fefito comentou a demissão de Narloch da CNN e nos trouxe esses dados

“A título de informação, de acordo com o Boletim Epidemiológico do Ministério da Saúde, entre 2007 e 2019, 248.520 pessoas (homens e mulheres) se infectaram no país pelo vírus HIV a partir de relações sexuais. Destas, 105.014 eram LGBT+. Isso representa 42% do total. Ou seja: 58% dos infectados, a maioria, era heterossexual.” 

Ou seja.”


Acho engraçado quando alguém apresenta dados para tentar confirmar um argumento, mas acaba confirmando o oposto. Qual é a prevalência de homossexuais na população brasileira se comparados com os heterossexuais? Não chega a 10%. Dos infectados por HIV entre 2007 e 2019, pouco menos da metade era homossexual. Ou seja: o número de homossexuais infectados por HIV no período é alarmante. Por que é proibido dizer isso? Por que dizer isso faz um jornalista ser demitido? 


CNN foi tão desarrazoada em sua medida que pouco tempo depois de demitir Narloch por esse farelo – que logo seria esquecido pelas redes sociais, ocupadas em outras cruzadas expurgatórias –, contratou Alexandre Garcia para compor o quadro de comentaristas do canal. 


No Brasil atual, o negócio não é ser controverso, meio polemista ou um pouco enganado, é preciso ser uma tragédia total, um desafio à inteligência e ao bipedalismo, uma carniça exposta na mesa de jantar. Então o sujeito já desafiou tanto o bom senso e está tão enlameado de absurdo que isso se torna uma característica positiva, um diferencial, um trunfo. Está aí a Aberração da República para provar o ponto. 


7.4. Quando escrevo que um time de futebol pode parar o jogo ao perceber que pessoas da arquibancada estão fazendo xingamentos racistas contra seus jogadores, estou falando de xingamentos racistas, não de meramente apontar uma pessoa negra em campo usando sua cor como referência. Numa partida no final de 2020 entre o Paris Saint-Germain e o Istanbul Basaksehir, os jogadores pararam o jogo em protesto a uma fala do quarto árbitro, o romeno Sebastien Coltescu. O que aconteceu: 

“De acordo com os relatos do dia, Coltescu queria chamar a atenção do árbitro do jogo, perto de 15 minutos do primeiro tempo, para punir ou expulsar um membro da comissão técnica do Istanbul, o camaronês Pierre Webó. O juiz Ovidiu Hategan não entendeu. Então, o quarto árbitro disse o seguinte para indicar quem era: ‘O negro está ali. Vai ver quem é. Aquele negro não pode continuar a agir desta forma, retire-o’.” 

A matéria do UOL de onde o trecho acima foi tirado tinha este título: “Por que fala do 4º árbitro no jogo entre PSG e Istanbul foi racista”. Se uma manchete opinativa fosse “Por que Paris é a cidade mais linda do mundo”, eu apenas discordaria e deixaria pra lá, mas sentença de racismo dessa forma costumo levar mais a sério. Para escrever a matéria e chegar a essa conclusão, o jornalista conversou apenas com dois “especialistas” que chancelaram a tese de que o árbitro cometeu racismo – um jornalista e doutor do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas, e um doutor em Letras, líder do Grupo de Pesquisa em Linguagem e Racismo da UFSB. A matéria não trouxe o outro lado de ninguém: nem a fala do árbitro alegando que não tinha cometido racismo, nem um especialista para dizer “que frescura, se ele fosse ruivo o árbitro ia dizer O RUIVO”. 


Contextos podem mudar tudo. Para um árbitro romeno, uma pessoa negra no meio de brancas pode ter uma característica diferencial que faça valer a pena indicá-la como negra para facilitar que seu interlocutor entenda de quem ele trata. Perdi as contas de quantas vezes fui indicada como “a loira”, “a gordinha”, “a baixinha” – e sem tom pejorativo. Se eu estivesse jogando futebol em Moçambique, como vocês acham que os outros me indicariam ao não saber meu nome ou esquecer dele? 


8. É mais difícil desejar humanidade para criminosos quando a coisa errada acontece com as pessoas certas. Se é desproporcional querer que alguém que cometeu furto vá para a cadeia, nós muitas vezes pensamos “bem-feito” quando um estuprador em série que vai preso acaba assassinado por outros presidiários. Em prol da humanidade de uma mulher que apanhava com frequência do marido, sentimos menos humanidade pelo marido quando ele é esfaqueado por ela. Meu cérebro não produziu sentimento de compaixão quando policiais mataram 10 criminosos que invadiram residências no bairro do Morumbi, em São Paulo, portando fuzis. A palavra-chave FUZIL prejudica meus sentimentos quando está associada a bandidos. 


Mas não é porque o desejo de vingança é uma característica tão humana e comum que não devemos tomar cuidado com ele. Há pessoas presas preventivamente que são inocentes ou que cometeram crimes leves. Há serviçal de traficante que vai preso como se fosse o dono do morro. Há pessoas que furtaram itens em supermercados e vão para a prisão, onde são violentadas, ficam cegas, morrem. O feminismo identitário burguês está tentando ampliar o que pode ser considerado estupro, e, se as coisas continuarem nesse ritmo, um dia vão prender homem que foi autorizado a se despir, a beijar e a penetrar, mas que no meio do sexo não foi autorizado a gozar – e gozou. “Cinco segundos antes de ele gozar eu disse que não queria mais e mesmo assim ele insistiu em terminar: fui estuprada.” Há pessoas presas por engano, como este homem que ficou preso durante 5 anos por estupro no Ceará e foi libertado em 2019 após atestarem sua inocência. (Neste caso é até difícil entender a magnitude da incompetência da Justiça Criminal, pois um vídeo do estuprador mostra um sujeito muito mais alto do que o homem que foi preso.) 


Então quando alguém diz que “bandido bom é bandido morto”, talvez devamos perguntar: que tipo de bandido? Quando alguém diz que o sistema prisional não precisa melhorar “porque quem vai preso tem mesmo é que sofrer”, talvez devamos perguntar: qualquer preso deve sofrer? E se a selvageria prisional faz com que o preso saia pior da prisão, que tipo de planejamento estamos fazendo para a sociedade quando esse preso terminar de cumprir sua pena? 


9. Pela nossa legislação, injúria é crime. Perseguição é mera contravenção penal. Alguém que te xinga de “idiota” é considerado mais perigoso e merecedor de punição do que alguém que te persegue. Isso está mal balanceado. 


9.1. Sou favorável que injúria deixe de ser crime e que perseguição passe a ser. E se alguém te persegue com injúrias – por exemplo, todos os dias envia e-mails com xingamentos para você –, acredito que isso deveria ser enquadrado como perseguição. 


9.2. Nossa Constituição de 88 não é perfeita. Em alguns pontos é francamente justiceira, colocando o racismo como crime inafiançável e imprescritível – enquanto homicídio e estupro prescrevem. A obsessão com a guerra às drogas me parece inadequada – e pelo visto não surtiu efeito. Mas ela certamente é melhor do que a “nova Constituição” que alguns reacionários do Congresso gostariam de pôr no lugar. O ruim é inimigo do pior. Vamos ficar com o ruim por enquanto. O pior tende a ser muito ruim. 


10. Diálogos insanos em tempos insanos: 


– Não gosto de Van Gogh, Salvador Dalí, Basquiat, Picasso e Tarsila do Amaral. 

– Você não gosta do Basquiat porque você é racista. 



– Na placa ali fora vocês diziam que não punham coentro nos pratos. E meu prato veio cheio de coentro. 

– Senhora, por favor, um pouco de coentro não faz mal a ninguém. 

– Então tirem aquela placa ali na entrada que diz “não colocamos coentro na comida”. 

– A senhora está sendo muito radical. Não é porque colocamos coentro deliberadamente em alguns pratos que não podemos deixar a placa. 

– A placa diz “não colocamos coentro na comida”. Vocês colocam. Se alguém reclama, vocês não fazem nada. Não quero banir o coentro, apenas gostaria de comer em restaurantes onde esse ingrediente não é colocado na comida. E foi por isso que entrei aqui. 

– Mas são poucos os pratos em que colocamos coentro… 

– Certo, mas pelo visto eu só saberei disso enquanto já estiver saboreando o prato. 

– Senhora, coentro é muito bom, deveria reconhecer isso. Vários clientes aprovam. 



A Lei – É proibido fazer X. 

O Juiz – Não é tão proibido. Sei que você não quis dizer isso, então vou liberar nos casos que correspondem aos meus entendimentos, mesmo que o crime seja de menor potencial ofensivo e mesmo que minha decisão prejudique o réu. 

A Lei – Se eu separei a tipificação de racismo da tipificação de injúria racial é porque são crimes diferentes que merecem atenção diferente. 

O Juiz – Ora, só quem nunca sofreu racismo acha que injúria racial e racismo não estão conectados. 

A Lei – Você está confundindo as coisas com esse palavrório sentimentalista. Não dá para comparar uma piada racista com o fato de alguém impedir que negros frequentem uma escola ou entrem em um ônibus. 

O Juiz – Sua antiquada, você está precisando de uma renovação, não está acompanhando os debates nas redes sociais… 

A Lei – Que venham os legisladores. 

O Juiz – As redes sociais… digo, a sociedade não pode esperar pelos legisladores. Vou aplicar entendimentos mais joviais nas coisas que você diz e mudar o sistema por dentro, vou salvar a modernidade! 

A Lei – Sua função típica é julgar, não legislar. Eu já sou cheia de lacunas e coisas mal esmiuçadas onde você pode pintar o sete: essa liberdade não é suficiente? 

O Juiz – “Liberdade é pouco, o que eu desejo ainda não tem nome.” Clarice Lispector. 


11. Texto escrito ao som de “Hush”, do Deep Purple, e outras coisas. 


11.1Essa música do Deep Purple que escolhi para encabeçar a postagem é um cover de uma música de Joe South. Descobri recentemente. 


11.2. Também descobri recentemente que a música “Crying in the rain”, do A-ha, é um cover dos Everly Brothers. As duas versões são bonitas. 


11.3. Outra música que embalou muito a escrita desta postagem: “Everything will turn out fine”, do Stealers Wheel. A música é toda linda, mas o finalzinho se esvaindo é minha parte favorita. 

(Postagem publicada originalmente no blog antigo em 24/01/2021 e atualizada em 28/05/2021.)